Crônica importantíssima e muito atual!
Refere-se à Ditadura do Estado Novo (1937-1945).
Escrita, provavelmente, ao longo do período entre 1934 e 1942.
Mário de Andrade faleceu em 1945.
Esta crônica faz parte do livro "Contos Novos", uma publicação póstuma, de 1947.
Mário de Andrade não diz o nome do trabalhador, apenas "o número 35", número do jaleco do carregador que trabalhava na Estação da Luz. Vale a pena ler a crônica e debater com os companheiros e companheiras!
A classe trabalhadora já passou por momentos mais obscuros do que o que estamos vivendo e nem por isso esmoreceu!
Viva a luta histórica da classe trabalhadora!
Primeiro de Maio
Mário de Andrade
Livro: “Contos Novos”
Os outros carregadores mais idosos, meio que
tinham caçoado do bobo, viesse trabalhar que era melhor, trabalho deles não
tinha feriado. Mas o 35 retrucava com altivez que não carregava mala de
ninguém, havia de celebrar o dia deles. E agora tinha o grande dia pela frente.
Dia dele... Primeiro quis tomar um banho pra
ficar bem digno de existir. A água estava gelada, ridente, celebrando, e abrira
um sol enorme e frio lá fora. Depois fez a barba. Barba era aquela penuginha
meio loura, mas foi assim mesmo buscar a navalha dos sábados, herdada do pai, e
se barbeou. Foi se barbeando. Nu só da cintura pra cima por causa da mamãe por
ali, de vez em quando a distância mais aberta do espelhinho refletia os
músculos violentos dele, desenvolvidos desarmoniosamente nos braços, na
peitaria, no cangote, pelo esforço quotidiano de carregar peso. O 35 tinha um
ar glorioso e estúpido. Porém ele se agradava daqueles músculos intempestivos,
fazendo a barba.
Ia devagar porque estava matutando. Era a
esperança dum turumbamba macota, em que ele desse uns socos formidáveis nas
ruças dos polícias. Não teria raiva especial dos polícias, era apenas a
ressonância vaga daquele dia. Com seus vinte anos fáceis, o 35 sabia, mais da
leitura dos jornais que de experiência, que o proletariado era uma classe
oprimida. E os jornais tinham anunciado que se esperava grandes
"motins" do Primeiro de Maio, em Paris, em Cuba, no Chile, em Madri.
O 35 apressou a navalha de puro amor. Era em Madri, no Chile que ele não tinha bem lembrança se ficava na América mesmo, era a gente dele... Uma piedade, um beijo lhe saía do corpo todo, feito proteção sadia de macho, ia parar em terras não sabidas, mas era a gente dele, defender, combater, vencer... Comunismo? ... Sim, talvez fosse isso. Mas o 35 não sabia bem direito, ficava atordoado com as notícias, os jornais falavam tanta coisa, faziam tamanha mistura de Rússia, só sublime ou só horrenda, e o 35 infantil estava por demais machucado pela experiência pra não desconfiar, o 35 desconfiava. Preferia o turumbamba porque não tinha medo de ninguém, nem do Carnera, ah, um soco bem nas ruças dum polícia... A navalha apressou o passo outra vez. Mas de repente o 35 não imaginou mais em nada por causa daquele bigodinho de cinema que era a melhor preciosidade de todo o seu ser. Lembrou aquela moça do apartamento, é verdade, nunca mais tinha passado lá pra ver se ela queria outra vez, safada! Riu.
O 35 apressou a navalha de puro amor. Era em Madri, no Chile que ele não tinha bem lembrança se ficava na América mesmo, era a gente dele... Uma piedade, um beijo lhe saía do corpo todo, feito proteção sadia de macho, ia parar em terras não sabidas, mas era a gente dele, defender, combater, vencer... Comunismo? ... Sim, talvez fosse isso. Mas o 35 não sabia bem direito, ficava atordoado com as notícias, os jornais falavam tanta coisa, faziam tamanha mistura de Rússia, só sublime ou só horrenda, e o 35 infantil estava por demais machucado pela experiência pra não desconfiar, o 35 desconfiava. Preferia o turumbamba porque não tinha medo de ninguém, nem do Carnera, ah, um soco bem nas ruças dum polícia... A navalha apressou o passo outra vez. Mas de repente o 35 não imaginou mais em nada por causa daquele bigodinho de cinema que era a melhor preciosidade de todo o seu ser. Lembrou aquela moça do apartamento, é verdade, nunca mais tinha passado lá pra ver se ela queria outra vez, safada! Riu.
Afinal o 35 saiu, estava lindo. Com a roupa
preta de luxo, um nó errado na gravata verde com listinhas brancas e aqueles admiráveis
sapatos de pelica amarela que não pudera sem comprar. O verde da gravata, o
amarelo dos sapatos, bandeira brasileira, tempos de grupo escolar... E o 35
comoveu num hausto forte, querendo bem o seu imenso Brasil, imenso colosso
gigante, foi andando depressa, assobiando. Mas parou de sopetão e se orientou
assustado. O caminho não era aquele, aquele era o caminho do trabalho.
Uma indecisão indiscreta o tornou consciente de novo que era o Primeiro de Maio, ele estava celebrando e não tinha o que fazer. Bom, primeiro decidiu ir na cidade pra assuntar alguma coisa. Mas podia seguir por aquela direção mesmo, era uma volta, mas assim passava na Estação da Luz dar um bom-dia festivo aos companheiros trabalhadores. Chegou lá, gesticulou o bom-dia festivo, mas não gostou porque os outros riram dele, bestas. Só que em seguida não encontrou nada na cidade, tudo fechado por causa do grande dia Primeiro de Maio. Pouca gente na rua. Deviam de estar almoçando já, pra chegar cedo no maravilhoso jogo de futebol escolhido pra celebrar o grande dia. Tinha, mas era muito polícia, polícia em qualquer esquina, em qualquer porta cerrada de bar e de café, nas joalherias, quem pensava em roubar! nos bancos, nas casas de loteria. O 35 teve raiva dos polícias outra vez.
Uma indecisão indiscreta o tornou consciente de novo que era o Primeiro de Maio, ele estava celebrando e não tinha o que fazer. Bom, primeiro decidiu ir na cidade pra assuntar alguma coisa. Mas podia seguir por aquela direção mesmo, era uma volta, mas assim passava na Estação da Luz dar um bom-dia festivo aos companheiros trabalhadores. Chegou lá, gesticulou o bom-dia festivo, mas não gostou porque os outros riram dele, bestas. Só que em seguida não encontrou nada na cidade, tudo fechado por causa do grande dia Primeiro de Maio. Pouca gente na rua. Deviam de estar almoçando já, pra chegar cedo no maravilhoso jogo de futebol escolhido pra celebrar o grande dia. Tinha, mas era muito polícia, polícia em qualquer esquina, em qualquer porta cerrada de bar e de café, nas joalherias, quem pensava em roubar! nos bancos, nas casas de loteria. O 35 teve raiva dos polícias outra vez.
E como não encontrasse mesmo um conhecido,
comprou o jornal pra saber. Lembrou de entrar num café, tomar por certo uma
média, lendo. Mas a maioria dos cafés estavam de porta cerrada e o 35 mesmo
achou que era preferível economizar dinheiro por enquanto, porque ninguém não
sabia o que estava pra suceder. O mais prático era um banco de jardim, com
aquele sol maravilhoso. Nuvens? umas nuvenzinhas brancas, ondulando no ar
feliz. Insensivelmente o 35 foi se encaminhando de novo para os lados do Jardim
da Luz. Eram os lados que ele conhecia, os lados em que trabalhava e se
entendia mais. De repente lembrou que ali mesmo na cidade tinha banco mais
perto, nos jardins do Anhangabaú. Mas o Jardim da Luz ele entendia mais.
Imaginou que a preferência vinha do Jardim da Luz ser mais bonito, estava
celebrando. E continuou no passo em férias.
Ao atravessar a estação achou de novo a
companheirada trabalhando. Aquilo deu um mal-estar fundo nele, espécie não
sabia bem, de arrependimento, talvez irritação dos companheiros, não sabia. Nem
quereria nunca decidir o que estava sentindo já... Mas disfarçou bem, passando
sem parar, se dando por afobado, virando pra trás com o braço ameaçador,
"Vocês vão ver!...” Mas um riso aqui, outro riso acolá, uma frase longe,
os carregadores companheiros, era tão amigo deles, estavam caçoando. O 35 se
sentiu bobo, impossível recusar, envilecido. Odiou os camaradas. Andou mais
depressa, entrou no jardim em frente, o primeiro banco era a salvação,
sentou-se. Mas dali algum companheiro podia divisar ele e caçoar mais, teve
raiva. Foi lá no fundo do jardim campear banco escondido. Já passavam negras
disponíveis por ali. E o 35 teve uma idéia muito não pensada, recusada, de que
ele também estava uma espécie de negra disponível, assim. Mas não estava não, estava
celebrando, não podia nunca acreditar que estivesse disponível e não acreditou.
Abriu o jornal. Havia logo um artigo muito bonito, bem pequeno, falando na
nobreza do trabalho, nos operários que eram também os "operários da
nação", é isso mesmo. O 35 se orgulhou todo comovido. Se pedissem pra ele
matar, ele matava roubava, trabalhava grátis, tomado dum sublime desejo de
fraternidade, todos os seres juntos, todos bons... Depois vinham as notícias.
Se esperavam "grandes motins" em Paris, deu uma raiva tal no 35. E
ele ficou todo fremente, quase sem respirar, desejando "motins"
(devia ser turumbamba) na sua desmesurada força física, ah, as ruças de
algum... polícia? polícia. Pelo menos os safados dos polícias.
Pois estava escrito em cima do jornal: em São
Paulo a Polícia proibira comícios na rua e passeatas, embora se falasse
vagamente em motins de tarde no Largo da Sé. Mas a polícia já tomara todas as
providências, até metralhadoras, estavam em cima do jornal, nos arranha-céus,
escondidas, o 35 sentiu um frio. O sol brilhante queimava, banco na sombra? Mas
não tinha, que a Prefeitura, pra evitar safadez dos namorados, punha os bancos
só bem no sol. E ainda por cima era aquela imensidade de guardas e polícias
vigiando que nem bem a gente punha a mão no pescocinho dela, trilo. Mas a
Polícia permitiria a grande reunião proletária, com discurso do ilustre
Secretário do Trabalho, no magnífico pátio interno do Palácio das Indústrias,
lugar fechado! A sensação foi claramente péssima. Não era medo, mas por que que
a gente havia de ficar encurralado assim! é! E pra eles depois poderem cair em
cima da gente, (palavrão)! Não vou! não sou besta! Quer dizer: vou sim!
desaforo! (palavrão), socos, uma visão tumultuaria, rolando no chão, se
machucava mas não fazia mal, saíam todos enfurecidos do Palácio das Indústrias,
pegavam fogo no Palácio das Indústrias, não! a indústria é a gente,
"operários da nação" pegavam fogo na igreja de São Bento mais próxima
que era tão linda por “drento”, mas pra que pegar fogo em nada! (O 35 chegara
até a primeira comunhão em menino...), é melhor a gente não pegar fogo em nada;
vamos no Palácio do Governo, exigimos tudo do Governo, vamos com o general da
Região Militar, deve ser gaúcho, gaúcho só dá é farda, pegamos fogo no palácio
dele. Pronto. Isso o 35 consentiu, não porque o tingisse o menor separatismo (e
o aprendido no grupo escolar?) mas nutria sempre uma espécie de despeito por
São Paulo ter perdido na revolução de 32. Sensação aliás quase de esporte,
questão de Palestra-Coríntians, cabeça inchada, porque não vê que ele havia de
se matar por causa de uma besta de revolução diz-que democrática, vão
"eles"!... Se fosse o Primeiro de Maio, pêlos menos... O 35 percebeu
que se regava todo por “drento” dum espírito generoso de sacrifício. Estava
outra vez enormemente piedoso, morreria sorrindo, morrer... Teve uma nítida,
envergonhada sensação de pena. Morrer assim tão lindo, tão moço. A moça do
apartamento...
Salvou-se lendo com pressa, oh! os deputados
trabalhistas chegavam agora às nove horas, e o jornal convidavam (sic) o povo
pra ir na Estação do Norte (a estação rival, desapontou) pra receber os grandes
homens. Se levantou mandado, procurou o relógio da torre da Estação da Luz,
ora! não dava mais tempo! quem sabe se dá!
Foi correndo, estava celebrando, raspou
distraído o sapato lindo na beira de tijolo do canteiro (palavrão), parou
botando um pouco de guspe no raspão, depois engraxo, tomou o bonde pra cidade,
mas dando uma voltinha pra não passar pelos companheiros da Estação. Que alvoroço
por dentro, ainda havia de aplaudir os homens. Tomou o outro bonde pro Brás.
Não dava mais tempo, ele percebia, eram quase nove horas quando chegou na
cidade, ao passar pelo Palácio das Indústrias, o relógio da torre indicava nove
e dez, mas o trem da Central sempre atrasa, quem sabe? bom: às quatorze horas
venho aqui, não perco, mas devo ir, são nossos deputados no tal de congresso,
devo ir. Os jornais não falavam nada dos trabalhistas, só falavam dum que
insultava muito a religião e exigia divórcio, o divórcio o 35 achava necessário
(a moça do apartamento...), mas os jornais contavam que toda a gente achava
graça no homenzinho "Vós, burgueses", e toda a gente, os jornais
contavam, acabaram se rindo do tal do deputado. E o 35 acabou não achando mais
graça nele. Teve até raiva do tal, um soco é que merecia. E agora estava
torcendo pra não chegar com tempo na Estação.
Chegou tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove e quinze. Pois não havia mais nada, não tinha aquela multidão que ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia alguns carregadores dali também e foi perguntar. Não, não tinham reparado nada, decerto foi aquele grupinho que parou na porta da Estação, tirando fotografia Aí outro carregador conferiu que eram os deputados sim, porque tinham tomado aqueles dois sublimes automóveis oficiais. Nada feito.
Ao chegar na esquina o 35 parou pra tomar o bonde, mas vários bondes passaram. Era apenas um moço bem-vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhando a rua. Mas de repente sentiu fome e se reachou. Havia por dentro, por “drento” dele um desabalar neblinoso de ilusões, de entusiasmo e uns raios fortes de remorso. Estava tão desagradável, estava quase infeliz... Mas como perceber tudo isso se ele precisava não perceber!... O 35 percebeu que era fome.
Chegou tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove e quinze. Pois não havia mais nada, não tinha aquela multidão que ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia alguns carregadores dali também e foi perguntar. Não, não tinham reparado nada, decerto foi aquele grupinho que parou na porta da Estação, tirando fotografia Aí outro carregador conferiu que eram os deputados sim, porque tinham tomado aqueles dois sublimes automóveis oficiais. Nada feito.
Ao chegar na esquina o 35 parou pra tomar o bonde, mas vários bondes passaram. Era apenas um moço bem-vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhando a rua. Mas de repente sentiu fome e se reachou. Havia por dentro, por “drento” dele um desabalar neblinoso de ilusões, de entusiasmo e uns raios fortes de remorso. Estava tão desagradável, estava quase infeliz... Mas como perceber tudo isso se ele precisava não perceber!... O 35 percebeu que era fome.
Decidiu ir a-pé pra casa, foi a-pé, longe,
fazendo um esforço penoso para achar interesse no dia. Estava era com fome,
comendo aquilo passava. Tudo deserto, era por ser feriado, Primeiro de Maio. Os
companheiros estavam trabalhando, de vez em quando um carrego, o mais eram
conversas divertidas, mulheres de passagem, comentadas, piadas grossas com as
mulatas do jardim, mas só as bem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos
simpatizavam logo com ele, ora por que que hoje me deu de lembrar aquela moça
do apartamento!... Também: moça morando sozinha é no que dá. Em todo caso, pra
acabar o dia era uma idéia ir lá, com que pretexto?... Devia ter ido em Santos,
no piquenique da Mobiliadora, doze paus o convite, mas o Primeiro de Maio...
Recusara, recusara repetindo o "não" de repente com raiva, muito
interrogativo, se achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Então conseguiu
imaginar que esse piquenique monstro, aquele jogo de futebol que apaixonava
eles todos, assim não ficava ninguém pra celebrar o Primeiro de Maio, sentiu-se
muito triste, desamparado. E melhor tomo por esta rua. Isso o 35 percebeu
claro, insofismável que não era melhor, ficava bem mais longe. Ara, que tem!
Agora ele não podia se confessar mais que era pra não passar na Estação da Luz
e os companheiros não rirem dele outra vez. E deu a volta, deu com o coração
cerrado de angústia indizível, com um vento enorme de todo o ser soprando ele
pra junto dos companheiros, ficar lá na conversa, quem sabe? trabalhar... E
quando a mãe lhe pôs aquela esplêndida macarronada celebrante sobre a mesa, o
35 foi pra se queixar "Estou sem fome, mãe". Mas a voz lhe morreu na
garganta.
Não eram bem treze horas e já o 35 desembocava
no parque Pedro II outra vez, à vista do Palácio das Indústrias. Estava
inquieto mas modorrento, que diabo de sol pesado que acaba com a gente, era por
causa do sol. Não podia mais se recusar o estado de infelicidade, a solidão
enorme, sentida com vigor. Por sinal que o parque já se mexia bem agitado.
Dezenas de operários, se via, eram operários endomingados, vagueavam, por ali,
indecisos, ar de quem não quer. Então nas proximidades do palácio, os grupos se
apinhavam, conversando baixo, com melancolia de conspiração. Polícias por todo
lado.
O 35 topou com o 486, grilo quase amigo, que
policiava na Estação da Luz. O 486 achara jeito de não trabalhar aquele dia
porque se pensava anarquista, mas no fundo era covarde. Conversaram um pouco de
entusiasmo semostradeiro, um pouco de primeiro de maio, um pouco de
"motim". O 486 era muito valentão de boca, o 35 pensou. Pararam bem
na frente do Palácio das Indústrias que fagulhava de gente nas sacadas, se via
que não eram operários, decerto os deputados trabalhistas, havia até moças, se
via que eram distintas, todos olhando para o lado do parque onde eles estavam.
Foi uma nova sensação tão desagradável que ele
deu de andar quase fugindo, polícias, centenas de polícias, moderou o passo
como quem passeia. Nas ruas que davam pro parque tinha cavalarias aos grupos,
cinco, seis escondidos na esquina, querendo a discrição de não ostentar força e
ostentando. Os grilos ainda não faziam mal, são uns (palavrão)! O palácio dava
idéia duma fortaleza enfeitada, entrar lá dentro, eu!... O 486 então,
exaltadíssimo, descrevia coisas piores, massacres horrendos de
"proletários" lá dentro, descrevia tudo com a visibilidade dos
medrosos, o pátio fechado, dez mil proletários no pátio e os polícias lá em
cima nas janelas, fazendo pontaria na maciota.
Mas foi só quando aqueles três homens bem-vestidos, se via que não eram operários, se dirigindo aos grupos vagueantes, falaram pra eles em voz alta: "Podem entrar! não tenham vergonha! podem entrar!" com voz de mandando assim na gente... O 35 sentiu medo franco. Entrar ele! Fez como os outros operários: era impossível assim soltos, desobedecer aos três homens bem-vestidos, com voz mandando, se via que não eram operários. Foram todos obedecendo, se aproximando das escadarias, mas o maior número longe da vista dos três homens, torcia caminho, iam se espalhar pelas outras alamedas do parque, mais longe.
Mas foi só quando aqueles três homens bem-vestidos, se via que não eram operários, se dirigindo aos grupos vagueantes, falaram pra eles em voz alta: "Podem entrar! não tenham vergonha! podem entrar!" com voz de mandando assim na gente... O 35 sentiu medo franco. Entrar ele! Fez como os outros operários: era impossível assim soltos, desobedecer aos três homens bem-vestidos, com voz mandando, se via que não eram operários. Foram todos obedecendo, se aproximando das escadarias, mas o maior número longe da vista dos três homens, torcia caminho, iam se espalhar pelas outras alamedas do parque, mais longe.
Esses movimentos coletivos de recusa, acordaram
a covardia do 35. Não era medo, que ele se sentia fortíssimo, era pânico. Era
um puxar unânime, uma fraternidade, era carícia dolorosa por todos aqueles
companheiros fortes tão fracos que estavam ali também pra... pra celebrar?
pra... O 35 não sabia mais pra quê. Mas o palácio era grandioso por demais com
as torres e as esculturas, mas aquela porção de gente bem-vestida nas escadas
enxergando ele (teve a intuição violenta de que estava ridiculamente vestido),
mas o enclausuramento na casa fechada, sem espaço de liberdade, sem ruas
abertas pra avançar, pra correr dos cavalarias, pra brigar... E os polícias na
maciota, encarapitados nas janelas, dormindo na pontaria, teve ódio do 486,
idiota medroso! De repente o 35 pensou que ele era moço, precisava se
sacrificar: se fizesse um modo bem-visível de entrar sem medo no palácio, todos
haviam de seguir o exemplo dele. Pensou, não fez. Estava tão opresso, se
desfibrara tão rebaixado naquela mascarada de socialismo, naquela
desorganização trágica, o 35 ficou desolado duma vez. Tinha piedade, tinha
amor, tinha fraternidade, e era só. Era uma sarça ardente, mas era sentimento
só. Um sentimento profundíssimo, queimando, maravilhoso, mas desamparado, mas
desamparado. Nisto vieram uns cavalarias, falando garantidos:
— Aqui ninguém não fica não! a festa é lá dentro, me'rmão! no parque ninguém não pára não!
Cabeças-chatas... E os grupos deram de andar outra vez, de cá para lá, riscando no parque vasto, com vontade, com medo, falando baixinho, mastigando incerteza. Deu um ódio tal no 35, um desespero tamanho, passava um bonde, correu, tomou o bonde sem se despedir do 486, com ódio do 486, com ódio do primeiro de maio, quase com ódio de viver.
— Aqui ninguém não fica não! a festa é lá dentro, me'rmão! no parque ninguém não pára não!
Cabeças-chatas... E os grupos deram de andar outra vez, de cá para lá, riscando no parque vasto, com vontade, com medo, falando baixinho, mastigando incerteza. Deu um ódio tal no 35, um desespero tamanho, passava um bonde, correu, tomou o bonde sem se despedir do 486, com ódio do 486, com ódio do primeiro de maio, quase com ódio de viver.
O bonde subia para o centro mais uma vez. Os
relógios marcavam quatorze horas, decerto a celebração estava principiando,
quis voltar, dava muito tempo, três minutos pra descer a ladeira, teve fome.
Não é que tivesse fome, porém o 35 carecia de arranjar uma ocupação senão
arrebentava. E ficou parado assim, mais de uma hora, mais de duas horas, no
Largo da Sé, diz-que olhando a multidão.
Acabara por completo a angústia. Não pensava, não sentia mais nada. Uma vagueza cruciante, nem bem-sentida, nem bem-vivida, inexistência fraudulenta, cínica, enquanto o primeiro de maio passava. A mulher de encarnado foi apenas o que lhe trouxe de novo à lembrança a moça do apartamento, mas nunca que ele fosse até lá, não havia pretexto, na certa que ela não estava sozinha. Nada. Havia uma paz, que paz sem cor por dentro...
Pelas dezessete horas era fome, agora sim, era fome. Reconheceu que não almoçara quase nada, era fome, e principiou enxergando o mundo outra vez. A multidão já se esvaziava, desapontada, porque não houvera nem uma briguinha, nem uma correria no Largo da Sé, como se esperava. Tinha claros bem largos, onde os grupos dos polícias resplandeciam mais. As outras ruas do centro, essas então quase totalmente desertas. Os cafés, já sabe, tinham fechado, com o pretexto magnânimo de dar feriado aos seus "proletários" também.
Acabara por completo a angústia. Não pensava, não sentia mais nada. Uma vagueza cruciante, nem bem-sentida, nem bem-vivida, inexistência fraudulenta, cínica, enquanto o primeiro de maio passava. A mulher de encarnado foi apenas o que lhe trouxe de novo à lembrança a moça do apartamento, mas nunca que ele fosse até lá, não havia pretexto, na certa que ela não estava sozinha. Nada. Havia uma paz, que paz sem cor por dentro...
Pelas dezessete horas era fome, agora sim, era fome. Reconheceu que não almoçara quase nada, era fome, e principiou enxergando o mundo outra vez. A multidão já se esvaziava, desapontada, porque não houvera nem uma briguinha, nem uma correria no Largo da Sé, como se esperava. Tinha claros bem largos, onde os grupos dos polícias resplandeciam mais. As outras ruas do centro, essas então quase totalmente desertas. Os cafés, já sabe, tinham fechado, com o pretexto magnânimo de dar feriado aos seus "proletários" também.
E o 35 inerme, passivo, tão criança, tão já
experiente da vida, não cultivou vaidade mais: foi se dirigindo num passo
arrastado para a Estação da Luz, pra os companheiros dele, esse era o domínio
dele. Lá no bairro os cafés continuavam abertos, entrou num, tomou duas médias,
comeu bastante pão com manteiga, exigiu mais manteiga, tinha um fraco por
manteiga, não se amolava de pagar o excedente, gastou dinheiro, queria gastar
dinheiro, queria perceber que estava gastando dinheiro, comprou uma maçã bem
rubra, oitocentão! foi comendo com prazer até os companheiros. Eles se
ajuntaram, agora sérios, curiosos, meio inquietos, perguntando pra ele. Teve um
instinto voluptuoso de mentir, contar como fora a celebração, se enfeitar, mas
fez um gesto só, (palavrão), cuspindo um muxoxo de desdém pra tudo.
Chegava um trem e os carregadores se dispersaram, agora rivais, colhendo carregos em porfia. O 35 encostou na parede, indiferente, catando com dentadinhas cuidadosas os restos da maçã, junto aos caroços. Sentia-se cômodo, tudo era conhecido velho, os choferes, os viajantes. Surgiu um farrancho que chamou o 22. Foram subir no automóvel mas afinal, depois de muita gritaria, acabaram reconhecendo que tudo não cabia no carro. Era a mãe, eram as duas velhas, cinco meninos repartidos pêlos colos e o marido. Tudo falando: "Assim não serve não! As malas não vão não!" Aí o chofer garantiu enérgico que as malas não levava, mas as maletas elas "não largavam não", só as malas grandes que eram quatro. Deixaram elas com o 22, gritaram a direção e partiram na gritaria. Mais cabeça chata, o 35 imaginou com muita aceitação.
O 22 era velhote. Ficou na beira da calçada com aquelas quatro malas pesadíssimas, preparou a correia, mas coçou a cabeça.
— Deixe que te ajudo, chegou o 35.
E foi logo escolhendo as duas malas maiores, que ergueu numa só mão, num esforço satisfeito de músculos. O 22 olhou pra ele, feroz, imaginando que 35 propunha rachar o galho. Mas o 35 deu um soco só de pândega no velhote, que estremeceu socado e cambaleou três passos. Caíram na risada os dois. Foram andando.
Chegava um trem e os carregadores se dispersaram, agora rivais, colhendo carregos em porfia. O 35 encostou na parede, indiferente, catando com dentadinhas cuidadosas os restos da maçã, junto aos caroços. Sentia-se cômodo, tudo era conhecido velho, os choferes, os viajantes. Surgiu um farrancho que chamou o 22. Foram subir no automóvel mas afinal, depois de muita gritaria, acabaram reconhecendo que tudo não cabia no carro. Era a mãe, eram as duas velhas, cinco meninos repartidos pêlos colos e o marido. Tudo falando: "Assim não serve não! As malas não vão não!" Aí o chofer garantiu enérgico que as malas não levava, mas as maletas elas "não largavam não", só as malas grandes que eram quatro. Deixaram elas com o 22, gritaram a direção e partiram na gritaria. Mais cabeça chata, o 35 imaginou com muita aceitação.
O 22 era velhote. Ficou na beira da calçada com aquelas quatro malas pesadíssimas, preparou a correia, mas coçou a cabeça.
— Deixe que te ajudo, chegou o 35.
E foi logo escolhendo as duas malas maiores, que ergueu numa só mão, num esforço satisfeito de músculos. O 22 olhou pra ele, feroz, imaginando que 35 propunha rachar o galho. Mas o 35 deu um soco só de pândega no velhote, que estremeceu socado e cambaleou três passos. Caíram na risada os dois. Foram andando.