sexta-feira, 13 de setembro de 2024

O clima não está bom

 

Foto: Avenida Paulista (Francisco Nunes)




O clima não está bom




Por: Francisco José Nunes

(Mestre em Ciências Sociais - PUC/SP; graduado em Filosofia;

ativista em diversos movimentos populares)




Nesta semana, de 9 a 13 de setembro de 2024, a cidade de São Paulo transformou-se na cidade mais poluída do planeta! Infelizmente, já há muito tempo a capital paulista convive passivamente com a poluição. Mas nunca havia conquistado este título.




Em 2007 o filósofo, teólogo e ecologista Leonardo Boff publicou um artigo intitulado “O palhaço de Kierkegaard”. O escritor brasileiro cita um aforismo do filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1955), sobre um incêndio que inicialmente atingiu as cortinas dos fundos do circo.




Preocupados, os artistas decidiram avisar imediatamente o público para que se retirassem do circo, mas o único artista que estava pronto para entrar em cena era o palhaço. Então ele foi até o palco, comunicou o ocorrido e pediu para que todos saíssem do local. Mas o público começou a rir. Desesperado, o palhaço começou a fazer apelos insistentes, então o público começou a rir mais ainda. O fogo atingiu todo o circo com todas as pessoas dentro.




O escritor Leonardo Boff diz que, nas últimas décadas , os ecologistas foram tratados como palhaços.




Por enquanto, o fogo ainda está atingindo “as cortinas do circo” planetário. O que fazer?




O diagnóstico já temos. Os principais responsáveis já conhecemos. A luta entre os ecologistas e os ecocidas é muito desproporcional. Aqui reside o desafio para todos e todas. Especialmente para os filósofos e filósofas. A vitória temporária dos ecocidas está fundamentada na máquina de convencimentos da maioria das pessoas. Isto é, na imposição das ideias neoliberais, no estímulo ao individualismo e à prosperidade a qualquer custo e no estímulo ao consumismo.




Está muito difícil enfrentar este conjunto de ideias! Além do mais, estas ideias estão gerando um clima de niilismo negativo. Isto é, “vontade de nada”. Estão convencendo as pessoas de que não há solução para o problema e que a única alternativa é “aproveitar cada dia da sua vida”. Já dizia o filósofo Karl Marx: “As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante” (“A Ideologia Alemã”, de Marx e Engels - 1845). As ideias ecocidas são as ideias da elite econômica e que são impostas para as massas.




O que é preciso fazer para mudar este clima? Fazer a “batalha das ideias” e fazer a luta política! Segundo Paulo Freire: “A teoria sem prática é estéril e a prática sem teoria é ingênua”! Precisamos somar forças com os movimentos ecológicos. Temos vários movimentos na vanguarda teórica e prática da luta ecológica: o Movimento Ecossocialista, o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) entre vários outros. Mas precisamos tomar cuidado com o movimento “ecocapitalista”!




Em tempos de eleições municipais precisamos identificar quais são os candidatos a prefeito e a prefeita, a vereador e vereadora, que em sua trajetória de vida tem uma atuação em defesa do meio ambiente!




Sugestões de leitura:




1 - “O que é Ecossocialismo?”, de Michael Löwy, Editora Cortez.




2 - “Ecologia: Grito da Terra - Grito dos Pobres”, de Leonardo Boff, Editora Vozes.




3 - “Enfrentando o Antropoceno: capitalismo fóssil e a crise do sistema terrestre”, de Ian Angus, Editora Boitempo.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Marcha da Consciência Negra e Copa do Mundo 2022

 


Marcha da Consciência Negra e Copa do Mundo 2022

Por: Francisco José Nunes



Neste ano, o Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, coincide com o dia da abertura da Copa do Mundo - 2022. A marcha em São Paulo começará às 10h00, no MASP e irá até o Theatro Municipal. 


A Copa do Mundo, no Catar, vai ter a Cerimônia de Abertura às 12h00 e o início da partida entre o Catar e o Equador às 13h00 (horário de Brasília).



O lema da Marcha da Consciência Negra deste ano é: “Por um Brasil com Democracia e Sem Racismo”!



A questão racial e o futebol são inseparáveis. E isso faz lembrar um caso de racismo ocorrido com um amigo do escritor Joel Rufino dos Santos, que estava assistindo um jogo no Maracanã. O escritor relata o caso no seu livro “O que é Racismo” (Editora Brasiliense, p. 40):


Um amigo meu, famoso ator de TV, assistia a um Flamengo e Grêmio, no Maracanã. Toda vez que Cláudio Adão perdia um gol - e foram vários - um sujeitinho se levantava para berrar: “Crioulo burro! Sai daí, ô macaco!” Meu amigo engolia em seco. Até que Carpegiani perdeu uma oportunidade “debaixo dos paus”. Ele achou que chegara a sua vez. “Aí, branco burro! Branco tapado!” Instalou-se um súbito e denso mal-estar naquele setor das cadeiras - o único preto ali, é preciso que se diga, era o meu amigo. Passado um instante, o sujeitinho não se conteve: “Olha aqui, garotão, você levou a mal aquilo. Não sou racista, sou oficial do Exército”. Meu amigo, aparentando naturalidade, encerrou a conversa: “E eu não sou”.


Jogo correndo, toda vez que Paulo César pegava uma bola, algumas fileiras atrás um solitário torcedor do Grêmio amaldiçoava: “Crioulo sem-vergonha! Foi a maior mancada do Grêmio comprar este fresco…” Meu amigo virou-se então para o primeiro sujeito e avisou: “Olha, tem um outro oficial do Exército aí atrás…”


A primeira edição do livro “O que é Racismo” é de 1980. Portanto, publicado na última etapa da ditadura militar. Emblematicamente estamos caminhando para o último mês de um “governo militarizado”. Governo que estimulou o racismo diariamente. Mas em ambos os períodos o Movimento Negro e Antirracista ganhou força e musculatura. 


Considerando que, historicamente, durante os períodos de “redemocratização” dificilmente a “democracia” chega até a periferia da sociedade, onde está a maior parte da população negra, o Movimento Negro e Antirracista terá um grande desafio pela frente: lutar por uma democratização que inclua os setores populares.


O dia 20 de novembro de 2022 estará recoberto por um forte simbolismo na luta por uma democracia que inclua os setores populares!


Viva Dandara! Viva Zumbi dos Palmares! Viva Marielle Franco!


segunda-feira, 14 de novembro de 2022

O livro “A Metamorfose”, de Kafka, e o Mundo do Trabalho



O livro “A Metamorfose”, de Kafka, e o Mundo do Trabalho

Por: Francisco José Nunes


O livro desencadeia uma profunda reflexão sobre o sentido da existência humana, sobre a exploração da classe trabalhadora, sobre as contradições da chamada “família tradicional” e sobre as crises da sociedade burguesa.



O “Café Filosófico na Paulista”, realizado no dia 26 de outubro, promoveu uma profunda reflexão, inspirada na famosa obra de Kafka. O evento ocorreu no Auditório Assis Chateaubriand, da Faculdade Paulista de Comunicação - FPAC.


A convidada para fazer a reflexão foi a Profa. Ana Paula Ribeiro, professora de Geografia e Coordenadora Pedagógica na Rede Municipal de Educação de São Paulo. O evento contou com a apresentação do Prof. Francisco José Nunes, professor de Filosofia, Mestre em Ciências Sociais e criador do “Café Filosófico na Paulista”.


O livro “A Metamorfose” é um dos mais importantes e influentes da Literatura Ocidental. A primeira frase do livro é impactante: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”.


O protagonista, Gregor Samsa, é um “caixeiro-viajante” e arrimo de família. Ao acordar de manhã, percebe que não era mais um ser humano, mas um inseto monstruoso. Isso impedia que ele saísse para trabalhar. Algumas horas depois, o chefe de Gregor no trabalho, bate na porta de seu quarto querendo saber o porquê dele não ter ido trabalhar.


O livro foi publicado em 1915. É um dos poucos livros de Kafka publicados em vida. Já que ele faleceu com 41 anos de idade. A publicação aconteceu durante a Primeira Guerra Mundial, refletindo as contradições da “modernidade europeia” e o ambiente fecundo para o crescimento do Fascismo e do Nazismo.


Neste momento de crises que perpassam a sociedade brasileira e grande parte do planeta terra, as reflexões de Kafka conseguem iluminar nossa caminhada rumo a uma sociedade fraterna e economicamente solidária.


As Metamorfoses kafkianas no Mundo do Trabalho


A palestrante foi a Profa. Ana Paula Ribeiro, professora de Geografia e Coordenadora Pedagógica da Rede Municipal de Educação de São Paulo. Ela apontou três questões centrais na obra: a metáfora da desumanização, a solidão do ser e a crise da modernidade. Ao longo de sua fala ressaltou que a transformação de Gregor, o protagonista, em inseto monstruoso já expressa visualmente a desumanização. Essa transformação já ocorria antes, quando Gregor era um trabalhador explorado e, portanto, alienado do fruto do seu trabalho. Esta alienação já ocorria na convivência com a sua família ao longo da vida, culminando com a etapa em que ele é abandonado no quarto.


Durante o debate no Café, os participantes fizeram perguntas e também falaram sobre as suas impressões com relação ao livro. Falou-se sobre as semelhanças entre a situação de Gregor com a situação das pessoas que sofrem com a depressão. Alguém falou sobre o isolamento sofrido pelas pessoas que têm uma orientação sexual diferente da heteronormatividade imposta pela classe dominante na sociedade.


O livro foi publicado em 1915, durante a chamada Segunda Revolução Industrial, período caracterizado pelas péssimas condições para os trabalhadores nas fábricas, longas jornadas de trabalho, baixa remuneração e muita desigualdade social. Apesar da sofisticação tecnológica, no Século XXI ainda podemos notar características semelhantes no mundo do trabalho: ambientes de trabalho inseguros, com muitos acidentes de trabalho, com muito assédio moral e sexual, longas jornadas de trabalho, baixa remuneração e muita desigualdade social.


É notável a integração entre o contexto histórico e a obra. A estética kafkiana é muito contundente, seca, direta e potente. Este livro demonstra o alto nível da qualidade literária de Kafka. O “Café Filosófico na Paulista” foi uma oportunidade propícia para os leitores e leitoras trocarem as suas impressões, compartilharem suas reflexões e alimentarem o amor pela Filosofia e pela Literatura.


Reflexões kafkianas no Século XXI


O adjetivo “Kafkiano” está no mesmo patamar de: “homérico”, “dantesco” e “quixotesco”. O autor desenvolve com maestria uma espécie de “literatura do absurdo”. Ao modo expressionista ele expõe as crises vividas no início do Século XX: crise existencial (no caso do autor, com relação ao forte antissemitismo; a quantidade absurda de mortos durante a Primeira Guerra Mundial, etc); crise no mundo do trabalho (a exploração absurda dos trabalhadores; o prenúncio da crise capitalista que culminará em 1929, entre outras). A crise está presente nos diversos âmbitos da sociedade europeia. 


O ponto central da obra “A Metamorfose” é a alienação. Quando Gregor, o protagonista, percebe que não tem mais o corpo humano, mas havia se transformado num inseto, fica explícita a alienação. Gregor “toma consciência” que a vida que ele levava não pertencia a ele. Ele vivia praticamente para o trabalho e, portanto, não tinha controle da sua vida. A sociedade moderna separa as pessoas do produto do seu trabalho, separa umas pessoas das outras (incentivando o individualismo) e “separa a pessoa de si própria” (impedindo que possa dar sentido à sua vida).


Em vários momentos na obra é possível perceber o processo de desumanização: quando a irmã retira do quarto os móveis e os quadros (tirando as referências afetivas de Gregor); quando a irmã começa a tocar violino (a música é uma referência muito importante no processo de humanização, na obra a música deixa de ser uma expressão artística e vira apenas um entretenimento); quando a irmã deixa de tratar o Gregor como um irmão e passa a usar a palavra “isso” (ele deixa de ser um ser humano e passa a ser uma coisa).


No livro Kafka faz uma dura crítica ao modelo de família tradicional, ao mostrar que uma pessoa que era o arrimo da família ao ficar impossibilitada de continuar trabalhando foi: isolada, maltratada e posteriormente excluída. Durante a sua fase produtiva ele era parasitado pela família, depois da transformação ele foi tratado como um parasita. 


A escolha do livro “A Metamorfose” para reflexão no “Café Filosófico na Paulista”, demonstrou ter sido acertada, já que explicitou a riqueza de temas nesta obra, inclusive, deixando em aberto inúmeras possibilidades para futuras reflexões.



Sugestões de leitura:


1 - “Franz Kafka Essencial”, este livro da Editora Companhia das Letras consiste numa coletânea de obras do Kafka. Além do livro “A Metamorfose”, tem outras obras famosas do autor, como por exemplo: “O veredicto”, “Um artista da fome”, “Na colônia penal” e “Diante da lei”. Cabe destacar o texto de introdução, escrito pelo Prof. Modesto Carone, um estudioso da obra de Kafka e um dos principais tradutores da obra do escritor tcheco.


2 - A biografia de Kafka, escrita pelo crítico de arte francês Gérard-Georges Lemaire, pela Editora L&PM, edição de bolso.


sábado, 6 de agosto de 2022

Colômbia e o desejo de paz através da justiça social

 

Poster de Francia Márquez, na "Casa de la Paz", em Bogotá.


Colômbia e o desejo de paz

através da justiça social


Autor: Francisco José Nunes


De: Bogotá


Neste domingo, dia 7 de agosto, o povo colombiano terá um novo governo, através da posse de Gustavo Petro e de Francia Márquez. Aqui em Bogotá é possível ouvir facilmente as manifestações de esperança vinda de populares, de intelectuais e dos mais variados segmentos da sociedade.


Desde o início do século XX os movimentos populares já faziam esforços para construir a democracia no país, sofrendo sucessivas derrotas. Culminando com a opção feita por parte dos setores de esquerda pela luta armada revolucionária. Para enfrentar as guerrilhas, as oligarquias colombianas organizaram milícias paramilitares, que também combateram as lideranças sindicais e os movimentos populares. A quantidade de assassinatos e massacres é enorme. Acrescente-se a este ambiente conflitivo o crescimento do narcotráfico e a absurda campanha “Guerra às drogas”, liderada pelos EUA. Neste ambiente, os guerrilheiros passaram a cobrar impostos dos narcotraficantes e parte dos políticos passaram a entrar nos negócios das drogas, transformando-se em “narcopolíticos”.


O obstáculo para a adoção do regime democrático na Colômbia tem raízes semelhantes aos demais países da América Latina. Tais como: necessidade de realização da Reforma Agrária, de uma Reforma Tributária, de universalização da saúde e da educação, do reconhecimento das culturas afrocolombiana e dos povos indígenas. O novo governo pretende ir além, ao incluir ações profundas na defesa do meio ambiente, do cumprimento do Acordo de Paz realizado em 2016 (entre o Governo e as FARC) e melhorar a sua integração regional.


Preparativos para a posse, na Praça Bolívar, Bogotá.


É possível imaginar as gigantescas dificuldades. Entretanto, os movimentos populares estão muito esperançosos e o novo governo tem renovado seu compromisso com as mudanças. O presidente Gustavo Petro tem um vasto currículo marcado por ações transformadoras, ele foi prefeito de Bogotá e implantou inúmeras medidas importantes no âmbito do meio ambiente, da cultura e da administração pública. Por seu turno, a vice-presidenta Francia Márquez tem uma rica história de lutas ambientalistas e em defesa do povo afrocolombiano.


Banner nas proximidades da Praça Bolívar, em Bogotá.


Os movimentos populares colombianos olham para o Brasil com muita esperança. Considerando que a eleição do Presidente Lula será importantíssima para o fortalecimento de uma onda de mudanças nos países da América Latina. O compromisso com o crescimento econômico, a geração de empregos e renda, a defesa dos povos negro e indígena, as medidas de defesa do meio ambiente e o reingresso nos BRICS, serão o início das mudanças.


No livro “Cem anos de solidão”, Gabriel García Márquez diz que: “O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava de apontar com o dedo”. Ainda não temos nomes, conceitos, expressões, para nomear o que desejamos para a América Latina e, em especial, para a Colômbia, mas podemos apontar o dedo na direção de uma sociedade mais justa, igualitária e fraterna.


Boa sorte para Gustavo Petro e Francia Márquez!



Francisco José Nunes

Mestre em Ciências Sociais (PUC-SP), Graduado em Filosofia (UNIFAI-SP), Professor na Faculdade Paulista de Comunicação (FPAC) e membro do movimento Círculo Palmarino.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Uma trégua de Natal no meio da guerra

 

Filme: "Feliz Natal" - Foto: Divulgação

Uma trégua de Natal no meio da guerra


Por: Francisco José Nunes



Alguém poderia imaginar que durante uma guerra os dois exércitos oponentes fariam uma trégua para celebrar o Natal? Pois é, isso aconteceu! Tem um filme que recuperou este acontecimento histórico.


O filme “Feliz Natal” (2005) é uma ficção baseada em fatos reais. Trata-se de um episódio importante ocorrido durante o Dia de Natal de 1914. O cenário é a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), nas trincheiras entre a Alemanha e a Bélgica. Logo após o início da guerra, havia uma hipótese de encerramento, dessa mesma guerra, antes do Natal de 1914. Neste período ocorreu uma “guerra de trincheiras”, porque nenhum dos lados conseguia avançar. De modo geral, as trincheiras inimigas ficavam com uma distância de 100 metros. Isso permitia metralhar inúmeros soldados de ambos os lados, mas também possibilitava fazer provocações verbais devido à proximidade.


Em dezembro de 1914 ocorreu um inverno rigoroso, tornando mais difícil o deslocamento das tropas. No dia 24 de dezembro, as tropas de ambos os lados receberam árvores de natal, bebidas e alimentos. Um dos lados começou a entoar hinos de natal, sendo prontamente seguido de hinos natalinos do outro lado. Um dos soldados do lado alemão era o tenor Nikolaus Sprink, que estava com sua esposa, a soprano Anna Sörensen e começaram a cantar as músicas “Noite Feliz” e “Adeste Fideles”. Em seguida, espontaneamente, foi decretada uma trégua e começou a confraternização entre as tropas inimigas. Trocaram presentes, mostraram as fotos de suas esposas e namoradas, falaram o que conheciam sobre os países e suas cidades, especialmente Paris.


Neste clima, um padre anglicano, que atuava como enfermeiro, celebrou uma emocionante missa, embalada pela soprano que cantou “Ave Maria”. Os soldados ainda aproveitaram a trégua para jogar futebol. Também realizaram o enterro dos soldados mortos e no dia seguinte a guerra continuou. Entretanto, os soldados e o padre sofreram severas punições. A tropa alemã foi enviada para os campos de batalha contra a Rússia e o padre recebeu ordens diretas de um bispo anglicano para retornar para a Escócia. 


O diálogo entre o padre e o bispo é revelador sobre o uso perverso que é feito da mensagem de Jesus. Ao ser advertido pelo bispo sobre a missa que celebrou junto com as tropas inimigas, o padre disse: “Foi a missa mais importante da minha vida”. Em seguida o bispo vai celebrar uma missa para as tropas britânicas e inicia com o Evangelho de Mateus onde diz: “Não vim trazer a paz, mas a espada” (Mt 10, 34). E segue com sua pregação: “Vocês são os defensores da civilização. As forças do bem contra as forças do Mal. Essa guerra é na verdade uma Cruzada. Uma guerra santa para salvar a liberdade no mundo. Na verdade eu lhes digo: que os alemães não agem como nós e nem pensam como nós. Porque eles não são como nós, filhos de Deus”.


Não consta no filme, mas sabe-se que no dia 7 de dezembro de 1914, o Papa Bento XV fez um apelo a todos os líderes da Europa pela realização de uma trégua durante o Dia de Natal. Ele disse: “Que as armas possam cair no silêncio pelo menos na noite em que os anjos cantam”. Mas os chefes de Estado não deram ouvidos ao Papa. Entretanto, os subalternos realizaram “A Trégua de Natal”.


A Primeira Guerra Mundial causou um grande impacto no Brasil e na América Latina. Atingindo a economia, a política, a cultura, as relações internacionais e as práticas religiosas. Depois da triste associação entre a cruz e a espada durante os primeiros séculos de colonização do Brasil, agora a Europa que se impunha como modelo de sociedade para o mundo, fracassou enquanto “civilização ocidental cristã”. 


Será que em meio a essa “guerra híbrida” que estamos vivendo no Brasil desde 2013, teremos uma trégua neste Natal de 2021? Qual será o comportamento dos líderes das igrejas cristãs? Continuarão apoiando publicamente ou silenciosamente esse governo genocida? Quantas crianças morrerão por falta de vacina? Será que o povo conseguirá realizar uma confraternização, mesmo a contragosto dos poderosos?


É importante lembrar que após essa “Trégua de Natal” realizada em dezembro de 1914, os chefes militares proibiram qualquer outro tipo de confraternização nos campos de batalha. Inclusive, nos anos seguintes, no Dia de Natal, eles mandavam aumentar os bombardeios. Mesmo assim, ocorreram tentativas de confraternização durante a Páscoa e em outros momentos. Enquanto isso, no final de 1917, os comunistas conquistaram o poder na Rússia com o lema: “Paz, Terra e Pão”. Eles retiraram a Rússia da guerra, fizeram a Reforma Agrária e proporcionaram pão para os pobres.


Desde já, Feliz Natal queridos leitores e leitoras! Que tomemos fôlego, porque o ano de 2022 terá que ser um ano de luta acirrada contra o fascismo brasileiro. Foi durante a Primeira Guerra Mundial que Hitler começou a sua carreira, juntamente com vários oficiais alemães. 


É preciso estar atento e forte! Feliz 2022, com muitas lutas e muitas vitórias!



Serviço:

Filme: Feliz Natal (2005) - 116 min.

Direção: Christian Carion

Plataforma: HBO


Autor:

Francisco José Nunes

Mestre em Ciências Sociais - PUC-SP; Graduado em Filosofia;

Professor na Faculdade Paulista de Comunicação - FPAC.

P.S.: Este artigo foi publicado originalmente no site "Construir Resistência", no dia 23 de dezembro de 2021.


Carlos Marighella e o Mito de Sísifo

 

Filme: "Marighella" 
Foto: Divulgação (Globo Filmes)

Carlos Marighella e o Mito de Sísifo


Por: Francisco José Nunes



O filme “Marighella”, de Wagner Moura, trouxe de volta a figura do revolucionário Carlos Marighella. O filme é uma adaptação do livro “Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo”, do jornalista Mário Magalhães, pela Editora Companhia das Letras (2012). O filme é centrado na última fase da vida de Marighella, com alguns flashbacks da sua infância. Carlos Marighella nasceu no dia 5 de dezembro de 1911.


A impressão final que o filme passa é: não queira enfrentar a classe dominante brasileira, do contrário você será morto pela repressão; se você tem valores humanitários e não se conforma com a exploração dos trabalhadores, com o racismo, com a homofobia, com o machismo, com a fome, a miséria, a injustiça social; se você deseja acabar com toda essa maldade e construir uma sociedade fraterna; desista!


Em que pese suas inúmeras qualidades, o filme apresenta um Marighella quase solitário, caminhando para o sacrifício. Sem mostrar a sua longa trajetória de lutas, no movimento estudantil, no Partido Comunista, no Parlamento como
Deputado Federal Constituinte, entre outras lutas. Da mesma forma como apresenta sua companheira Clara Charf de forma apagada e colocando as mulheres revolucionárias em segundo plano, em relação aos homens.


A história de Marighella nos faz lembrar do “Mito de Sísifo”, aquele camponês que foi condenado a rolar, diariamente, uma pedra até o alto de uma montanha. Quando chegava no topo, não conseguindo reter a pedra, ela rolava até a base da montanha e ele era obrigado a reiniciar o trabalho no dia seguinte. Esse mito costuma ser utilizado para refletir sobre a maldição do mundo do trabalho explorado e também à reflexão sobre o sentido da vida, na perspectiva da filosofia existencialista. Especialmente com o filósofo e escritor Albert Camus.


Neste caso, a semelhança encontra-se no círculo vicioso da política brasileira, através da sua alternância entre períodos autoritários e períodos de redemocratização. 


A trajetória de Marighella é semelhante à de inúmeros lutadores e lutadoras do Brasil e da América Latina. Se a opção pelas mudanças sociais não pode ser pela luta revolucionária, a outra opção será pelo voto. Mas a democracia burguesa só funciona até a página dois. Depois de perder três ou quatro eleições seguidas, a classe dominante brasileira dá um golpe e impõe inúmeros retrocessos. Retirando direitos trabalhistas, desmontando o sistema de previdência social, o sistema de saúde pública, entregando de forma desavergonhada nossas riquezas naturais para as empresas estrangeiras, entre outras maldades. A questão que se coloca é: se não dá para fazer mudança pelo voto e nem pela luta revolucionária, que fazer?


Para compreendermos melhor a importância histórica de Marighella vamos recomendar um filme “Batismo de Sangue” e quatro documentários: 1) “Marighella” (2011), de Isa Grinspum Ferraz; 2) “Marighella, retrato falado do guerrilheiro” (2001), de Silvio Tendler; 3) “Carlos Marighella - quem samba fica, quem não samba vai embora” (2012), de Carlos Pronzato; 4) “Ato de Fé” (2004), de Alexandre Rampazzo e Tatiana Polastri. Esses ótimos documentários são baseados em depoimentos de militantes que atuaram ao lado de Marighella, na análise de historiadores e de pesquisadores contemporâneos sobre a vida e a obra de Marighella.


No documentário “Carlos Marighella - quem samba fica, quem não samba vai embora”, um dos militantes da organização política, liderada por Marighella, a Aliança Libertadora Nacional (ALN), o líder sindical dos ferroviários, Raphael Martinelli diz: “Nós, dirigentes comunistas, mentimos para a classe operária. Porque a gente dizia que qualquer reação da direita, que viesse a ocorrer, nós esmagaríamos. E, diante do Golpe [de 1964], nós não reagimos”. E para justificar a opção pela luta armada, o publicitário Manoel Cyrillo (ALN) afirma: “Os militares introduziram a arma na política. Eles tomaram de assalto o poder institucional, formalizado. A partir daquele momento você só conseguia fazer política com arma”. O professor de natação Rômulo Noronha (ALN) complementa: “Quem partiu para a ilegalidade foram os militares”. O jornalista, escritor e artista plástico Alípio Freire (Ala Vermelha), fez uma analogia com o nosso tempo. Isto é, o modelo político que estava sendo implementado antes do Golpe de 1964 era o chamado “Nacional Desenvolvimentismo”, um modelo tipicamente capitalista. Mas nem isso a burguesia brasileira admite. Qualquer semelhança com o Golpe de 2016 não é uma mera coincidência.


O documentário “Ato de Fé” trata exclusivamente da participação dos frades dominicanos no apoio à ALN, baseados na recém criada Teologia da Libertação. São entrevistados vários freis que foram presos e torturados, além do jornalista Franklin Martins e da historiadora Maria Aparecida de Aquino (USP). Na abertura, o documentário coloca uma seleção de frases dos frades dominicanos para provocar reflexão: “Todos nós cristãos somos, querendo ou não, discípulos de um prisioneiro político. Jesus não morreu nem de hepatite na cama, nem de desastre de camelo numa esquina de Jerusalém”; “É a primeira vez que, na história do Brasil, um grupo de cristãos é preso como cristãos”; “São pessoas que experimentaram aquilo que Jesus havia pedido: Bem-aventurados aqueles que têm sede de justiça”; “Nós tivemos uma atitude revolucionária motivada pela nossa fé”; “A verdadeira igreja é a que está nas catacumbas e eles formam homens das catacumbas”.


A Igreja Católica apoiou o Golpe de 1964 e depois passou a combater a ditadura, contribuindo com o processo de redemocratização. A Igreja Católica apoiou o Golpe de 2016 também. Será que em algum momento ela começará a combater esse governo fascista que está no poder?



Serviço:


Documentários:


1) “Marighella” (2011), 1h36min, de Isa Grinspum Ferraz.

https://www.youtube.com/watch?v=1cbe8G4G-_g&ab_channel=Andr%C3%A9HenriqueFigueiredo



2) “Marighella, retrato falado do guerrilheiro” (2001), 55min, de Silvio Tendler.

https://www.youtube.com/watch?v=4BP-OMjP08Q&ab_channel=CALIBANIcinemaeconte%C3%BAdo




3) “Carlos Marighella - quem samba fica, quem não samba vai embora” (2012), 1h38min, de Carlos Pronzato.

https://www.youtube.com/watch?v=KkFozCuVm1M&ab_channel=Rond%C3%B3daLiberdade



4) “Ato de Fé” (2004), 55min, de Alexandre Rampazzo e Tatiana Polastri.

https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/130089



Filmes:


  1. “Batismo de Sangue” (2006), 1h50min, de Helvécio Ratton.

https://www.youtube.com/watch?v=YuwY9vkkAYw&ab_channel=MegaHDFilmes


  1. “Marighella” (2019), 2h35min, de Wagner Moura.

Plataforma: Globoplay



Autor:

Francisco José Nunes

Mestre em Ciências Sociais - PUC-SP; Graduado em Filosofia;
Professor na Faculdade Paulista de Comunicação - FPAC.


P.S.: Este artigo foi publicado originalmente no site "Construir Resistência", no dia 03 de dezembro de 2021.

Crianças, pandemia e memórias

 

Capa do livro "Um, dois e já" (Editora Cosac Naify)

Crianças, pandemia e memórias


Por: Francisco José Nunes



O que ficará na memória das crianças sobre o período da pandemia do COVID-19? Apesar das adversidades, ficarão memórias de momentos felizes, prazerosos, intensos? Muitas mães e pais se desdobraram para contornar os problemas gerados pela pandemia. Buscaram garantir a rotina de alimentação, higiene, estudos e brincadeiras. Mas a reclusão pareceu ser um problema insuperável. A saudade das viagens bateu muito forte!


Neste período de pandemia, muitos adultos procuraram por livros e filmes, tanto para si próprios, quanto para as crianças.


Vamos indicar aqui um livro que provavelmente será dirigido tanto para os adultos, quanto para as crianças. Trata-se do livro: “Um, dois e já”, da escritora uruguaia Inés Bortagaray. É um romance autobiográfico, narrado na primeira pessoa, por uma menina, com a idade indefinida. Provavelmente, por volta de 9 anos. A narradora prende os leitores desde a primeira página. Seja pela singeleza, seja pela descrição das emoções, dos julgamentos e das brincadeiras de crianças, comum para a maioria das pessoas. 


O romance descreve uma viagem para a praia, da família da menina que narra o livro. Viajam da cidade de Salto, que fica na região noroeste do Uruguai, na fronteira com a cidade de Concórdia (Argentina) até a cidade litorânea La Paloma, numa distância de 702 km, dentro de um apertado carro Renault 12. No carro estão o pai, que é o motorista; a mãe, que fica ao lado e faz o “mate”; e no banco de trás ficam as quatro crianças. Não se sabe o nome dos pais, nem das crianças, nem suas idades. Apenas sabe-se que a menina-narradora é a filha do meio, que tem uma irmã mais velha, um irmão mais velho e uma irmã caçula. Isso faz com que os leitores se identifiquem com algum dos personagens. A longa viagem é um tédio. Então a narradora se recorda das brincadeiras e das experiências vividas.


Por tratar-se de uma longa viagem, há uma combinação sobre o acento nas janelas, isto é, a cada 200 km rodados é feita a troca. Ao longo das viagens as crianças brincam de contar os postes que passam, contar as vacas e as placas; “brincam de sério”; brincam de contar piadas, entre outras brincadeiras. “Vejo um poste que passa e vai embora até que vejo outro poste que passa e vai embora, mas nunca totalmente, porque na ida deixa um rastro. O rastro é o poste em movimento, o poste corrido, varrido, que continua numa fileira de postes-fantasmas de pé entre poste e poste verdadeiro”. Este é o primeiro parágrafo do livro.


Apesar da idade, a narração não é “infantilizada” e muito menos trata-se de um adulto disfarçado de criança. Essa é uma das preciosidades do livro. Parece que a família já fez esta viagem outras vezes, as crianças sempre recordam das paisagens. Além de brincar, a narradora dorme no ombro da irmã mais velha, tem sonhos e descreve os sonhos. Às vezes se lembra das amigas, especialmente daquela que ficou cuidando do seu aquário, com dois peixes. Lembra também das situações desagradáveis, como por exemplo, ela tem enjoo durante as viagens e sempre vomita, pelo menos uma vez no caminho. 


Muitos detalhes desta resenha não estão no livro. Os leitores são impulsionados a concluir ou a pesquisar. Por exemplo, a narradora faz referências à ditadura no Uruguai, que durou de 1973 até 1985; também fala sobre a “Guerra das Malvinas”, que foi de 2 de abril até 14 de junho de 1982. A autora do livro, Inés Bortagaray, nasceu na cidade de Salto, no dia 22 de maio de 1975. Sobre isso, a narradora diz: “Outro dia meus pais foram a uma manifestação pela democracia e Eva (amiga da narradora) estava comigo e fomos todos juntos e na praça pulamos ao som de quem não pula quer censura. A Eva pulava mais que eu e aplaudia e até se aproximou do palco para ficar mais perto dos políticos.”


O livro também é cheio de ironia. A menina assim descreve um de seus pensamentos durante a viagem: “Às vezes penso no dia seguinte à minha morte e no anúncio da margarina que unta, com aquelas dobrinhas perfeitas, a superfície da torrada perfeita e o ar matinal da família feliz no café da manhã com sol e janela e cortina e jornal e torrada e fumaça saindo do café e as unhas de todo mundo bem cortadas e limpinhas e tudo vai continuar funcionando como antes, e quando a mãe morde a torrada ao mesmo tempo que sorri e lança aquele olhar de que delícia essa margarina, meu Deus do céu, já posso morrer (isso é o que ele diz mentalmente, no ápice do entusiasmo, não é o que eu digo, apesar de estar justamente falando da minha eventual morte) (...). O livro tem apenas 93 páginas, mas contém uma riqueza enorme de detalhes, que os leitores saboreiam do início ao fim. 


Retomando a pergunta inicial da resenha. Que memória as crianças guardarão dessa pandemia? Sobre livros, filmes, brincadeiras; será que conseguiram visitar os avós após a vacinação? Ou os avós faleceram antes da chegada da vacina? O que as crianças aprenderam para poderem enfrentar uma “sociedade pandêmica”? Porque, pelo que tudo indica, a sociedade vai conviver constantemente com a pandemia do COVID-19 e de suas variantes; vai conviver com outras pandemias, porque o movimento negacionista cresceu muito e conta com o apoio da maior parte dos profissionais da saúde, com o apoio das instituições religiosas e da mídia.


Ainda bem que, diante de todas as adversidades, a literatura consegue acalentar nossos corações, sem nos deixar alienados!



Serviço


Livro: “Um, dois e já”

Autora: Inés Bortagaray

Ano: 2014

Páginas: 93

Editora: Cosac Naify


Nota: Apesar do fechamento dessa editora, é possível encontrar esse livro em bibliotecas, nos sebos e em algumas livrarias virtuais.



Autor:

Francisco José Nunes

Mestre em Ciências Sociais - PUC-SP; Graduado em Filosofia; Professor

na Faculdade Paulista de Comunicação - FPAC.

P.S.: Este artigo foi publicado originalmente no site "Construir Resistência", no dia 26 de novembro de 2021.