domingo, 7 de julho de 2019

Cinquentenário do livro “Diário da guerra do porco”

Adolfo Bioy Casares (1914-1999)



Cinquentenário do livro “Diário da Guerra do Porco”

Autor do artigo: Francisco José Nunes

               Em 1969 o escritor argentino Adolfo Bioy Casares publicou o livro “Diário da guerra do porco”. Após 50 anos de sua publicação, a obra ficou mais relevante, seja por suas qualidades literárias, seja pelo seu tema de triste atualidade.

         O “Diário” registra um período da história de Buenos Aires em que um movimento de jovens persegue, espanca e mata pessoas idosas; por considerarem que elas são improdutivas, inúteis, ridículas e um peso econômico para a sociedade.

         Casares tinha 55 anos quando publicou este livro e parece manifestar preocupação com o seu próprio envelhecimento. O personagem principal é Isidoro Vidal, uma pessoa que vive os conflitos da transição entre a fase adulta e a velhice. Nos diálogos entre os amigos de Vidal aparecem os sinais da velhice: surdez, dificuldade para dormir, uso de dentadura, incontinência urinária e impotência sexual.

         O grupo de amigos de Isidoro Vidal é formado por: Jimi, Néstor, Dante, Arévalo e Rey. Isidoro Vidal é conhecido no bairro por “don Isidro”. Vidal é inquilino em um populoso cortiço (conventillo) no tradicional bairro Recoleta, na Rua Paunero, perto do Parque Las Heras. Ele vive com o filho Isidorito, um jovem que trabalha como vigia noturno de uma escola. Isidoro Vidal foi abandonado pela esposa quando Isidorito era criança.


         O primeiro capítulo do livro já apresenta um panorama da história. Vidal está com dor de dente e conversa com o seu vizinho Bogliolo, que logo indica um dentista. Naquele mesmo dia, à tarde, Vidal vai ao dentista. Após examinar, “o dentista lhe explicou que a partir de uma certa idade as gengivas, como se fossem de barro, amolecem por dentro, e que felizmente agora a ciência dispunha de um remédio prático: a extirpação de toda a dentadura e a sua substituição por outra mais apropriada”.

Depois de passar por essa “carnificina”, Vidal retorna para casa. No dia seguinte amanhece “com indisposição e febre”. Ficou na cama o dia todo. Mas no outro dia, “na quarta-feira, dia 25 de junho, resolveu pôr fim àquela situação. Iria ao café, para jogar a habitual partida de truco. Pensou que à noite seria o melhor momento para encontrar os amigos”. Logo que entra no café seu amigo Jimi comenta com ironia: “Que belo aparelho de jantar”. Néstor também passou pelo mesmo sofrimento.

         O grupo de amigos se tratava como “os rapazes” (“los muchachos”). “A palavra ‘rapazes’, empregada por eles, não supõe um desejo estranho e inconsciente de se passar por jovens, como afirma Isidorito, o filho de Vidal, mas obedece à casualidade de uma vez já o terem sido e que por isso, justamente, se tratavam desse modo”.

Os debates sobre os sinais do envelhecimento são constantes ao longo do “Diário”. Nesta noite do dia 25 de junho, em pleno inverno, depois de tomar Fernet (bebida muito popular na Argentina, composta por diversos tipos de ervas maceradas no álcool), comer queijo e amendoim, jogar diversas partidas de truco (Vidal perdeu todas), o grupo decide ir embora para suas casas. Mas enquanto se preparavam para sair, o jornaleiro “don Manuel” entrou no café, foi até o balcão, bebeu um copo de vinho tinto e logo foi embora.


         Na caminhada pelas ruas “los muchachos” enfrentavam um frio intenso, mas trocavam frases espirituosas e faziam provocações entre si. Enquanto se divertiam, o grupo de amigos foi surpreendido por uma gritaria. A princípio pensaram que estavam matando um cachorro, um gato ou um rato. Ao avançarem mais alguns metros observaram um grupo de jovens, armados de paus e ferros, que espancavam uma pessoa. Era o jornaleiro “don Manuel”. “Vidal viu que o pobre velho estava de joelhos, o tronco inclinado para a frente, a cabeça destroçada, protegida com as mãos ensanguentadas”. Não havia mais tempo para salvar “don Manuel”, ele já estava morto.

Afastando-se um pouco, Vidal descobriu um casal que observava tudo e manifestava com um olhar de desaprovação aquela matança. “O rapaz, de óculos, levava livros debaixo do braço; ela parecia uma garota decente. Buscando um apoio no casal de jovens, Vidal comentou: ‘Que lição’! A jovem disse: ‘Sou contrária a qualquer violência’. Tentando conquistar a solidariedade deles, Vidal disse: “Nós não podemos fazer nada, mas a polícia, para que serve”? Mas o rapaz advertiu Vidal: “Vovô, não é hora de andar discutindo. Por que não vai embora antes que lhe aconteça alguma coisa”?

         Vidal foi para casa, mas não conseguiu dormir naquela noite. Ao longo do “Diário da guerra do porco” vamos observar que o filho de Vidal, o Isidorito e o filho de Néstor aderem ao movimento de jovens que matam pessoas idosas. O nome do movimento é “Jovens Turcos” e o seu mentor ideológico é Arturo Farrell, um líder que insufla o movimento através de seu programa diário em uma emissora de rádio. Aqui entramos no contexto histórico da obra. Este livro foi publicado em 1969, mas suas referências remontam à década de 1940. O nome “Arturo Farrell” é uma composição de dois protagonistas da política na Argentina.

O General Arturo Rawson, que deu um Golpe de Estado no dia 4 de junho de 1943, mas foi derrubado no dia 7 de junho do mesmo ano, pelo “Grupo de Oficiais Unidos” (GOU), que colocou no poder o General Pedro Pablo Ramirez Machuca. Este ficou na Presidência da República de 7 de junho de 1943 até 25 de fevereiro de 1944; e, foi sucedido pelo General Edelmiro Julián Farrell, Presidente da Argentina de 25 de fevereiro de 1944 até 4 de junho de 1946. A partir de 1946 começa a “Era Perón”. Acrescente-se que o General Arturo Rawson, na década de 1920, participou das campanhas militares que massacraram os indígenas da região do Chaco, como Oficial de Cavalaria.

     O Movimento “Jovens Turcos”, originalmente, era formado por militares da Turquia, que chegaram ao poder em 1908 e tinham entre seus principais objetivos: a modernização e ocidentalização da Turquia. Muitos desses oficiais estudaram na Alemanha e eram muito interessados pela Revolução Francesa, Rousseau, Montesquieu e Victor Hugo. Mas foi este movimento o responsável pelo “Holocausto Armênio”. O dia 24 de abril de 1915 é considerado o dia do início do genocídio do povo armênio na Turquia. Neste dia foi decretada a prisão de 250 intelectuais, líderes religiosos e políticos. Alguns foram enviados para o exílio, mas a maioria deles foi assassinada. Até o ano de 1923 calcula-se que tenham sido assassinados cerca de 1,5 milhão de armênios, mortos de fome, fuzilados, queimados, decapitados.
       
O “Diário da guerra do porco” narra também a morte de Néstor, que foi ao Estádio de Futebol, levado por seu filho e foi morto durante um tumulto provocado pela torcida jovem. Durante o velório os amigos (“los muchachos”) conversam sobre os problemas que estão enfrentando, principalmente o fato de o Governo atrasar o pagamento das aposentadorias. Um dos jovens presentes entra na conversa e diz: “Um dia desses ouvi falar de um plano compensatório: o oferecimento de terras no Sul a pessoas idosas”.

Irritado, Dante comenta: “Digam simples e claramente que vão deportar os velhos em massa”! Ao que Rey complementa: “Como bucha de canhão”. E Arévalo conclui: “Para tamponar possíveis infiltrações de nossos irmãos chilenos”. Será que o Governo pretendia enviar as pessoas idosas para a Região da Patagônia, no Sul da Argentina? Onde parte do território é formado por deserto e a outra parte por geleiras.

         Em meio a este ambiente de violência o “Diário” também relata as relações amorosas e a sexualidade das pessoas idosas. Marcado pelo conservadorismo, machismo e a tradicional falta de educação sexual. No caso do personagem principal, don Isidro, ocorrerá um relacionamento caracterizado por aproximações e distanciamentos com Nélida, uma jovem que tenta se aproximar dele, mas ele acha que este amor seria impossível. Sobre o relacionamento com mulheres mais jovens don Isidro sentencia: “Tem que dizer a si mesmo que elas não são para você. Quando olha demais para elas, vira um velho repugnante”.

         Este artigo pretende refletir sobre o tema principal do livro: “a guerra contra as pessoas idosas” e ao mesmo tempo recomendar a leitura do livro. O escritor Adolfo Bioy Casares ficou famoso com a publicação do ótimo livro: “A Invenção de Morel”, publicado em 1940, que Jorge Luis Borges classificou como um “livro perfeito”.

         O grande escritor Casares ao escrever o “Diário da guerra do porco” usa uma série de recursos literários: o personagem-narrador do diário, às vezes se identifica, outras vezes busca um distanciamento dos fatos; em vários momentos da narrativa do “Diário” faz-se referência à sonhos de Vidal, de tal maneira que certos acontecimento se confundem com sonhos, mas a história em geral é marcada pelo pesadelo; as descrições das formas de violência, a física (agressões, espancamentos e assassinatos) e a simbólica (ofensas verbais contra as pessoas idosas e a exaltação da juventude).

          Um aspecto curioso, mas não menos importante, se refere ao título do livro. Em espanhol o título é: “Diário de la guerra del cerdo”. “Cerdo”, além de porco também pode ser traduzido por “capado”. Isto é, o porco é capado para engordar mais e dar mais lucro na hora da venda. Capar é extrair o órgão de reprodução do animal. Conclusão, trata-se de um diário da guerra contra as pessoas castradas sexual, econômica e socialmente.

         O “Diário” expõe o cinismo da juventude, especialmente quando a jovem estudante diz que “é contra a violência”, mas é omissa socialmente; e, as dificuldades das pessoas idosas para se organizarem e lutarem por sua defesa. O autor descreve muito bem um dos principais dilemas, que é a dificuldade para identificar “os inimigos mortais das pessoas idosas”.

Livro: “Diário da guerra do porco”
Autor: Adofo Bioy Casares
Editora: Biblioteca Azul
Coleção: Obras completas de Adolfo Bioy Casares – Volume B
Ano: 2019

terça-feira, 2 de julho de 2019

A culpa deve ser do sol

Albert Camus (1913-1960)


A culpa deve ser do sol

Texto de: Francisco José Nunes

       O escritor Albert Camus inicia o seu romance “O Estrangeiro”, com um dos parágrafos mais célebres da Literatura Universal:

         “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem”.

         O personagem principal do livro é Meursault. Ele é funcionário de um escritório em Argel, capital da Argélia, norte do continente africano. Pouco sabemos de sua vida e de sua família.

         O segundo parágrafo do livro informa que sua mãe estava internada num “asilo para velhos” em Marengo, a oitenta quilômetros de Argel. Ele pede licença ao seu patrão para ir ao velório e ao enterro, providencia a roupa de luto e parte em viagem de ônibus.

         Após o enterro volta para sua rotina. No trabalho, na relação com os vizinhos, com a namorada. Em certo momento a namorada pergunta se ele a ama. Ele dá uma resposta evasiva, parecida com um “não”. Ela fica triste, mas depois ele dá um beijo nela e tudo segue normal. Mais adiante, Meursault envolve-se num conflito com um árabe e depois de perseguições e brigas, Meurseult encontra o árabe na praia, é ameaçado com uma faca, então saca de um revolver e atira no árabe.

           Meursault é o personagem-narrador, ele encontra o árabe tomando sol na praia e descreve a cena em um parágrafo:


         “Pensei que bastava dar meia-volta e tudo estaria acabado. Mas atrás de mim comprimia-se toda uma praia vibrante de sol. Dei alguns passos em direção à nascente. O árabe não se mexeu. Apesar disso, estava ainda bastante longe. Parecia sorrir, talvez por causa das sombras sobre o seu rosto. O queimar do sol ganhava-me as faces e senti gotas de suor se acumularem nas minhas sobrancelhas. Era o mesmo sol do dia em que enterrara mamãe e, como então, doía-me sobretudo a testa, e todas as suas veias batiam juntas debaixo da pele. Por causa deste queimar, que já não conseguia suportar, fiz um movimento para a frente. Sabia que era estupidez, que não me livraria do sol se desse um passo. Mas dei um passo, um só passo à frente. E desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a faca, que ele me exibiu ao sol. A luz brilhou no aço e era como se uma longa lâmina fulgurante me atingisse na testa. No mesmo momento, o suor acumulado nas sobrancelhas correu de repente pelas pálpebras, recobrindo-as com um véu morno e espesso. Meus olhos ficaram cegos por trás desta cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas os címbalos do sol na testa e, de modo difuso, a lâmina brilhante da faca sempre diante de mim. Esta espada incandescente corroía as pestanas e penetrava meus olhos doloridos. Foi então que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e ardente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando chover fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revolver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então atirei quatro vezes ainda num corpo inerte em que as balas se enterravam sem que desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça”.

         No Tribunal do Júri, indagado sobre o motivo para ter atirado no árabe, Meursault coloca a culpa no sol.

         A essa altura do livro, a maioria dos leitores chega à seguinte conclusão: “que absurdo”! Como pode existir uma pessoa tão insensível, tão indiferente, tão vazia? Que sensação estranha!

         É justamente esta sensação incômoda que Albert Camus pretende provocar em seus leitores. Uma sensação de estranhamento. Não só o árabe é tratado como estrangeiro, mas o ser humano é um estranho no mundo.

         Durante o julgamento, a principal acusação foi que Meursault não manifestou sentimentos durante o velório e o enterro de sua mãe. A ponto do advogado de defesa indagar se aquele julgamento se referia ao enterro da mãe ou a um assassinato?

         O escritor Albert Camus, além de romancista, era dramaturgo e filósofo. Ele elaborou uma filosofia conhecida por “Absurdismo”, isto é, visão de mundo em que considera a existência um absurdo, contraditória, difícil de ser compreendida e desprovida de sentido. Através de seu personagem, Camus leva ao extremo esta situação, para provocar o seu leitor.

         O personagem Meursault coloca em evidência as fraquezas, as contradições, o vazio produzido pela chamada “sociedade ocidental cristã”. Em que os valores mínimos de respeito pela vida sequer são preservados e a extinção da solidariedade humana provoca uma devastação na sociedade. Hoje, mais de 70 anos após sua publicação, o livro “O Estrangeiro” continua a nos desafiar!

           Albert Camus nasceu na Argélia, país que era colônia da França. Seu pai morreu nos campos de batalha, durante a 1ª Guerra Mundial, quando Camus tinha apenas um ano de idade. Durante a ocupação nazista na França, Camus lutou na resistência antinazista. A publicação do livro “O Estrangeiro”, em 1942, reflete os dilemas humanos mais dilacerantes. Em 1957 ele ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Em 1960 ele morreu, vítima de um acidente de automóvel, aos 47 anos de idade.

         Recentemente o cantor, compositor, dramaturgo e escritor Chico Buarque, lançou uma música em homenagem a Camus, adaptando sua obra ao calor do sol brasileiro. A música chama-se “As Caravanas”.

         O sol tem múltiplos sentidos. Seja porque sempre se disse que a razão ilumina a vida humana; mas também se disse que não é possível filosofar nos Trópicos, porque o calor atrapalha a reflexão.

         Infelizmente, nem na Europa, nem nos Trópicos a razão foi suficiente para impedir o fascismo, o holocausto, os massacres e os genocídios.


         Abaixo, a parte principal da música “As Caravanas”, de Chico Buarque:

         Sol
         A culpa deve ser do sol
         Que bate na moleira
         O sol que estoura as veias

         O suor que embaça os olhos e a razão
         E essa zoeira dentro da prisão
         Crioulos empilhados no porão
         De caravelas no alto mar

         Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
         Filha do medo, a raiva é mãe da covardia