Albert Camus (1913-1960)
A culpa deve ser do sol
Texto de: Francisco José Nunes
O escritor Albert Camus
inicia o seu romance “O Estrangeiro”,
com um dos parágrafos mais célebres da Literatura Universal:
“Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama
do asilo: ‘Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isso não
esclarece nada. Talvez tenha sido ontem”.
O personagem principal do
livro é Meursault. Ele é funcionário de um escritório em Argel, capital da
Argélia, norte do continente africano. Pouco sabemos de sua vida e de sua
família.
O segundo parágrafo do livro informa que sua mãe estava
internada num “asilo para velhos” em Marengo, a oitenta quilômetros de Argel.
Ele pede licença ao seu patrão para ir ao velório e ao enterro, providencia a
roupa de luto e parte em viagem de ônibus.
Após o enterro volta para sua rotina. No trabalho, na
relação com os vizinhos, com a namorada. Em certo momento a namorada pergunta
se ele a ama. Ele dá uma resposta evasiva, parecida com um “não”. Ela fica
triste, mas depois ele dá um beijo nela e tudo segue normal. Mais adiante,
Meursault envolve-se num conflito com um árabe e depois de perseguições e
brigas, Meurseult encontra o árabe na praia, é ameaçado com uma faca, então
saca de um revolver e atira no árabe.
Meursault é o
personagem-narrador, ele encontra o árabe tomando sol na praia e descreve a cena
em um parágrafo:
“Pensei que bastava dar meia-volta e tudo estaria acabado. Mas atrás de
mim comprimia-se toda uma praia vibrante de sol. Dei alguns passos em direção à
nascente. O árabe não se mexeu. Apesar disso, estava ainda bastante longe.
Parecia sorrir, talvez por causa das sombras sobre o seu rosto. O queimar do sol
ganhava-me as faces e senti gotas de suor se acumularem nas minhas sobrancelhas.
Era o mesmo sol do dia em que enterrara mamãe e, como então, doía-me sobretudo
a testa, e todas as suas veias batiam juntas debaixo da pele. Por causa deste queimar,
que já não conseguia suportar, fiz um movimento para a frente. Sabia que era
estupidez, que não me livraria do sol se desse um passo. Mas dei um passo, um
só passo à frente. E desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a faca, que ele
me exibiu ao sol. A luz brilhou no aço e era como se uma longa lâmina
fulgurante me atingisse na testa. No mesmo momento, o suor acumulado nas
sobrancelhas correu de repente pelas pálpebras, recobrindo-as com um véu morno
e espesso. Meus olhos ficaram cegos por trás desta cortina de lágrimas e de
sal. Sentia apenas os címbalos do sol na testa e, de modo difuso, a lâmina
brilhante da faca sempre diante de mim. Esta espada incandescente corroía as
pestanas e penetrava meus olhos doloridos. Foi então que tudo vacilou. O mar
trouxe um sopro espesso e ardente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua
extensão, deixando chover fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre
o revolver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, no
barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o
sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de
uma praia onde havia sido feliz. Então atirei quatro vezes ainda num corpo
inerte em que as balas se enterravam sem que desse por isso. E era como se
desse quatro batidas secas na porta da desgraça”.
No Tribunal do Júri,
indagado sobre o motivo para ter atirado no árabe, Meursault coloca a culpa no
sol.
A essa altura do livro, a maioria dos leitores chega à
seguinte conclusão: “que absurdo”! Como pode existir uma pessoa tão insensível,
tão indiferente, tão vazia? Que sensação estranha!
É justamente esta sensação incômoda que Albert Camus
pretende provocar em seus leitores. Uma sensação de estranhamento. Não só o
árabe é tratado como estrangeiro, mas o ser humano é um estranho no mundo.
Durante o julgamento, a principal acusação foi que Meursault
não manifestou sentimentos durante o velório e o enterro de sua mãe. A ponto do
advogado de defesa indagar se aquele julgamento se referia ao enterro da mãe ou
a um assassinato?
O escritor Albert Camus, além de romancista, era dramaturgo
e filósofo. Ele elaborou uma filosofia conhecida por “Absurdismo”, isto é,
visão de mundo em que considera a existência um absurdo, contraditória, difícil
de ser compreendida e desprovida de sentido. Através de seu personagem, Camus leva
ao extremo esta situação, para provocar o seu leitor.
O personagem Meursault coloca em evidência as fraquezas, as
contradições, o vazio produzido pela chamada “sociedade ocidental cristã”. Em
que os valores mínimos de respeito pela vida sequer são preservados e a
extinção da solidariedade humana provoca uma devastação na sociedade. Hoje,
mais de 70 anos após sua publicação, o livro “O Estrangeiro” continua a nos
desafiar!
Albert Camus nasceu na
Argélia, país que era colônia da França. Seu pai morreu nos campos de batalha, durante
a 1ª Guerra Mundial, quando Camus tinha apenas um ano de idade. Durante a
ocupação nazista na França, Camus lutou na resistência antinazista. A
publicação do livro “O Estrangeiro”, em 1942, reflete os dilemas humanos mais
dilacerantes. Em 1957 ele ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Em 1960 ele
morreu, vítima de um acidente de automóvel, aos 47 anos de idade.
Recentemente o cantor, compositor, dramaturgo e escritor Chico Buarque, lançou uma música em
homenagem a Camus, adaptando sua obra ao calor do sol brasileiro. A música
chama-se “As Caravanas”.
O sol tem múltiplos sentidos. Seja porque sempre se disse
que a razão ilumina a vida humana; mas também se disse que não é possível
filosofar nos Trópicos, porque o calor atrapalha a reflexão.
Infelizmente, nem na Europa, nem nos Trópicos a razão foi
suficiente para impedir o fascismo, o holocausto, os massacres e os genocídios.
Abaixo, a parte principal da música “As Caravanas”, de Chico
Buarque:
Sol
A culpa deve ser do sol
Que bate na moleira
O sol que estoura as veias
O suor que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar
Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
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