terça-feira, 2 de julho de 2019

A culpa deve ser do sol

Albert Camus (1913-1960)


A culpa deve ser do sol

Texto de: Francisco José Nunes

       O escritor Albert Camus inicia o seu romance “O Estrangeiro”, com um dos parágrafos mais célebres da Literatura Universal:

         “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem”.

         O personagem principal do livro é Meursault. Ele é funcionário de um escritório em Argel, capital da Argélia, norte do continente africano. Pouco sabemos de sua vida e de sua família.

         O segundo parágrafo do livro informa que sua mãe estava internada num “asilo para velhos” em Marengo, a oitenta quilômetros de Argel. Ele pede licença ao seu patrão para ir ao velório e ao enterro, providencia a roupa de luto e parte em viagem de ônibus.

         Após o enterro volta para sua rotina. No trabalho, na relação com os vizinhos, com a namorada. Em certo momento a namorada pergunta se ele a ama. Ele dá uma resposta evasiva, parecida com um “não”. Ela fica triste, mas depois ele dá um beijo nela e tudo segue normal. Mais adiante, Meursault envolve-se num conflito com um árabe e depois de perseguições e brigas, Meurseult encontra o árabe na praia, é ameaçado com uma faca, então saca de um revolver e atira no árabe.

           Meursault é o personagem-narrador, ele encontra o árabe tomando sol na praia e descreve a cena em um parágrafo:


         “Pensei que bastava dar meia-volta e tudo estaria acabado. Mas atrás de mim comprimia-se toda uma praia vibrante de sol. Dei alguns passos em direção à nascente. O árabe não se mexeu. Apesar disso, estava ainda bastante longe. Parecia sorrir, talvez por causa das sombras sobre o seu rosto. O queimar do sol ganhava-me as faces e senti gotas de suor se acumularem nas minhas sobrancelhas. Era o mesmo sol do dia em que enterrara mamãe e, como então, doía-me sobretudo a testa, e todas as suas veias batiam juntas debaixo da pele. Por causa deste queimar, que já não conseguia suportar, fiz um movimento para a frente. Sabia que era estupidez, que não me livraria do sol se desse um passo. Mas dei um passo, um só passo à frente. E desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a faca, que ele me exibiu ao sol. A luz brilhou no aço e era como se uma longa lâmina fulgurante me atingisse na testa. No mesmo momento, o suor acumulado nas sobrancelhas correu de repente pelas pálpebras, recobrindo-as com um véu morno e espesso. Meus olhos ficaram cegos por trás desta cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas os címbalos do sol na testa e, de modo difuso, a lâmina brilhante da faca sempre diante de mim. Esta espada incandescente corroía as pestanas e penetrava meus olhos doloridos. Foi então que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e ardente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando chover fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revolver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então atirei quatro vezes ainda num corpo inerte em que as balas se enterravam sem que desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça”.

         No Tribunal do Júri, indagado sobre o motivo para ter atirado no árabe, Meursault coloca a culpa no sol.

         A essa altura do livro, a maioria dos leitores chega à seguinte conclusão: “que absurdo”! Como pode existir uma pessoa tão insensível, tão indiferente, tão vazia? Que sensação estranha!

         É justamente esta sensação incômoda que Albert Camus pretende provocar em seus leitores. Uma sensação de estranhamento. Não só o árabe é tratado como estrangeiro, mas o ser humano é um estranho no mundo.

         Durante o julgamento, a principal acusação foi que Meursault não manifestou sentimentos durante o velório e o enterro de sua mãe. A ponto do advogado de defesa indagar se aquele julgamento se referia ao enterro da mãe ou a um assassinato?

         O escritor Albert Camus, além de romancista, era dramaturgo e filósofo. Ele elaborou uma filosofia conhecida por “Absurdismo”, isto é, visão de mundo em que considera a existência um absurdo, contraditória, difícil de ser compreendida e desprovida de sentido. Através de seu personagem, Camus leva ao extremo esta situação, para provocar o seu leitor.

         O personagem Meursault coloca em evidência as fraquezas, as contradições, o vazio produzido pela chamada “sociedade ocidental cristã”. Em que os valores mínimos de respeito pela vida sequer são preservados e a extinção da solidariedade humana provoca uma devastação na sociedade. Hoje, mais de 70 anos após sua publicação, o livro “O Estrangeiro” continua a nos desafiar!

           Albert Camus nasceu na Argélia, país que era colônia da França. Seu pai morreu nos campos de batalha, durante a 1ª Guerra Mundial, quando Camus tinha apenas um ano de idade. Durante a ocupação nazista na França, Camus lutou na resistência antinazista. A publicação do livro “O Estrangeiro”, em 1942, reflete os dilemas humanos mais dilacerantes. Em 1957 ele ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Em 1960 ele morreu, vítima de um acidente de automóvel, aos 47 anos de idade.

         Recentemente o cantor, compositor, dramaturgo e escritor Chico Buarque, lançou uma música em homenagem a Camus, adaptando sua obra ao calor do sol brasileiro. A música chama-se “As Caravanas”.

         O sol tem múltiplos sentidos. Seja porque sempre se disse que a razão ilumina a vida humana; mas também se disse que não é possível filosofar nos Trópicos, porque o calor atrapalha a reflexão.

         Infelizmente, nem na Europa, nem nos Trópicos a razão foi suficiente para impedir o fascismo, o holocausto, os massacres e os genocídios.


         Abaixo, a parte principal da música “As Caravanas”, de Chico Buarque:

         Sol
         A culpa deve ser do sol
         Que bate na moleira
         O sol que estoura as veias

         O suor que embaça os olhos e a razão
         E essa zoeira dentro da prisão
         Crioulos empilhados no porão
         De caravelas no alto mar

         Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
         Filha do medo, a raiva é mãe da covardia

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