Adolfo Bioy Casares (1914-1999)
Cinquentenário do livro “Diário da Guerra do Porco”
Autor do artigo: Francisco José Nunes
Em 1969 o escritor
argentino Adolfo Bioy Casares publicou o livro “Diário da guerra do porco”.
Após 50 anos de sua publicação, a obra ficou mais relevante, seja por suas
qualidades literárias, seja pelo seu tema de triste atualidade.
O “Diário” registra um período da história de Buenos Aires
em que um movimento de jovens persegue, espanca e mata pessoas idosas; por considerarem
que elas são improdutivas, inúteis, ridículas e um peso econômico para a
sociedade.
Casares tinha 55 anos quando publicou este livro e parece
manifestar preocupação com o seu próprio envelhecimento. O personagem principal
é Isidoro Vidal, uma pessoa que vive os conflitos da transição entre a fase
adulta e a velhice. Nos diálogos entre os amigos de Vidal aparecem os sinais da
velhice: surdez, dificuldade para dormir, uso de dentadura, incontinência
urinária e impotência sexual.
O grupo de amigos de Isidoro Vidal é formado por: Jimi,
Néstor, Dante, Arévalo e Rey. Isidoro Vidal é conhecido no bairro por “don
Isidro”. Vidal é inquilino em um populoso cortiço (conventillo) no tradicional
bairro Recoleta, na Rua Paunero, perto do Parque Las Heras. Ele vive com o
filho Isidorito, um jovem que trabalha como vigia noturno de uma escola.
Isidoro Vidal foi abandonado pela esposa quando Isidorito era criança.
O primeiro capítulo do livro
já apresenta um panorama da história. Vidal está com dor de dente e conversa
com o seu vizinho Bogliolo, que logo indica um dentista. Naquele mesmo dia, à
tarde, Vidal vai ao dentista. Após examinar, “o dentista lhe explicou que a
partir de uma certa idade as gengivas, como se fossem de barro, amolecem por
dentro, e que felizmente agora a ciência dispunha de um remédio prático: a
extirpação de toda a dentadura e a sua substituição por outra mais apropriada”.
Depois
de passar por essa “carnificina”, Vidal retorna para casa. No dia seguinte
amanhece “com indisposição e febre”. Ficou na cama o dia todo. Mas no outro
dia, “na quarta-feira, dia 25 de junho, resolveu pôr fim àquela situação. Iria
ao café, para jogar a habitual partida de truco. Pensou que à noite seria o
melhor momento para encontrar os amigos”. Logo que entra no café seu amigo Jimi
comenta com ironia: “Que belo aparelho de jantar”. Néstor também passou pelo
mesmo sofrimento.
O grupo de amigos se tratava como “os rapazes” (“los
muchachos”). “A palavra ‘rapazes’, empregada por eles, não supõe um desejo
estranho e inconsciente de se passar por jovens, como afirma Isidorito, o filho
de Vidal, mas obedece à casualidade de uma vez já o terem sido e que por isso,
justamente, se tratavam desse modo”.
Os
debates sobre os sinais do envelhecimento são constantes ao longo do “Diário”.
Nesta noite do dia 25 de junho, em pleno inverno, depois de tomar Fernet
(bebida muito popular na Argentina, composta por diversos tipos de ervas
maceradas no álcool), comer queijo e amendoim, jogar diversas partidas de truco
(Vidal perdeu todas), o grupo decide ir embora para suas casas. Mas enquanto se
preparavam para sair, o jornaleiro “don Manuel” entrou no café, foi até o
balcão, bebeu um copo de vinho tinto e logo foi embora.
Na caminhada pelas ruas “los muchachos” enfrentavam um frio
intenso, mas trocavam frases espirituosas e faziam provocações entre si.
Enquanto se divertiam, o grupo de amigos foi surpreendido por uma gritaria. A
princípio pensaram que estavam matando um cachorro, um gato ou um rato. Ao
avançarem mais alguns metros observaram um grupo de jovens, armados de paus e
ferros, que espancavam uma pessoa. Era o jornaleiro “don Manuel”. “Vidal viu
que o pobre velho estava de joelhos, o tronco inclinado para a frente, a cabeça
destroçada, protegida com as mãos ensanguentadas”. Não havia mais tempo para
salvar “don Manuel”, ele já estava morto.
Afastando-se
um pouco, Vidal descobriu um casal que observava tudo e manifestava com um
olhar de desaprovação aquela matança. “O rapaz, de óculos, levava livros
debaixo do braço; ela parecia uma garota decente. Buscando um apoio no casal de
jovens, Vidal comentou: ‘Que lição’! A jovem disse: ‘Sou contrária a qualquer
violência’. Tentando conquistar a solidariedade deles, Vidal disse: “Nós não
podemos fazer nada, mas a polícia, para que serve”? Mas o rapaz advertiu Vidal:
“Vovô, não é hora de andar discutindo. Por que não vai embora antes que lhe
aconteça alguma coisa”?
Vidal foi para casa, mas não conseguiu dormir naquela noite.
Ao longo do “Diário da guerra do porco” vamos observar que o filho de Vidal, o
Isidorito e o filho de Néstor aderem ao movimento de jovens que matam pessoas
idosas. O nome do movimento é “Jovens Turcos” e o seu mentor ideológico é
Arturo Farrell, um líder que insufla o movimento através de seu programa diário
em uma emissora de rádio. Aqui entramos no contexto histórico da obra. Este
livro foi publicado em 1969, mas suas referências remontam à década de 1940. O
nome “Arturo Farrell” é uma composição de dois protagonistas da política na
Argentina.
O
General Arturo Rawson, que deu um Golpe de Estado no dia 4 de junho de 1943,
mas foi derrubado no dia 7 de junho do mesmo ano, pelo “Grupo de Oficiais
Unidos” (GOU), que colocou no poder o General Pedro Pablo Ramirez Machuca. Este
ficou na Presidência da República de 7 de junho de 1943 até 25 de fevereiro de
1944; e, foi sucedido pelo General Edelmiro Julián Farrell, Presidente da
Argentina de 25 de fevereiro de 1944 até 4 de junho de 1946. A partir de 1946 começa
a “Era Perón”. Acrescente-se que o General Arturo Rawson, na década de 1920,
participou das campanhas militares que massacraram os indígenas da região do
Chaco, como Oficial de Cavalaria.
O Movimento “Jovens
Turcos”, originalmente, era formado por militares da Turquia, que chegaram ao
poder em 1908 e tinham entre seus principais objetivos: a modernização e
ocidentalização da Turquia. Muitos desses oficiais estudaram na Alemanha e eram
muito interessados pela Revolução Francesa, Rousseau, Montesquieu e Victor
Hugo. Mas foi este movimento o responsável pelo “Holocausto Armênio”. O dia 24
de abril de 1915 é considerado o dia do início do genocídio do povo armênio na
Turquia. Neste dia foi decretada a prisão de 250 intelectuais, líderes
religiosos e políticos. Alguns foram enviados para o exílio, mas a maioria
deles foi assassinada. Até o ano de 1923 calcula-se que tenham sido
assassinados cerca de 1,5 milhão de armênios, mortos de fome, fuzilados,
queimados, decapitados.
O
“Diário da guerra do porco” narra também a morte de Néstor, que foi ao Estádio
de Futebol, levado por seu filho e foi morto durante um tumulto provocado pela
torcida jovem. Durante o velório os amigos (“los muchachos”) conversam sobre os
problemas que estão enfrentando, principalmente o fato de o Governo atrasar o
pagamento das aposentadorias. Um dos jovens presentes entra na conversa e diz:
“Um dia desses ouvi falar de um plano compensatório: o oferecimento de terras
no Sul a pessoas idosas”.
Irritado,
Dante comenta: “Digam simples e claramente que vão deportar os velhos em
massa”! Ao que Rey complementa: “Como bucha de canhão”. E Arévalo conclui:
“Para tamponar possíveis infiltrações de nossos irmãos chilenos”. Será que o
Governo pretendia enviar as pessoas idosas para a Região da Patagônia, no Sul
da Argentina? Onde parte do território é formado por deserto e a outra parte
por geleiras.
Em meio a este ambiente de violência o “Diário” também
relata as relações amorosas e a sexualidade das pessoas idosas. Marcado pelo
conservadorismo, machismo e a tradicional falta de educação sexual. No caso do
personagem principal, don Isidro, ocorrerá um relacionamento caracterizado por
aproximações e distanciamentos com Nélida, uma jovem que tenta se aproximar
dele, mas ele acha que este amor seria impossível. Sobre o relacionamento com
mulheres mais jovens don Isidro sentencia: “Tem que dizer a si mesmo que elas
não são para você. Quando olha demais para elas, vira um velho repugnante”.
Este artigo pretende refletir sobre o tema principal do
livro: “a guerra contra as pessoas idosas” e ao mesmo tempo recomendar a
leitura do livro. O escritor Adolfo Bioy Casares ficou famoso com a publicação
do ótimo livro: “A Invenção de Morel”, publicado em 1940, que Jorge Luis Borges
classificou como um “livro perfeito”.
O grande escritor Casares ao escrever o
“Diário da guerra do porco” usa uma série de recursos literários: o
personagem-narrador do diário, às vezes se identifica, outras vezes busca um
distanciamento dos fatos; em vários momentos da narrativa do “Diário” faz-se
referência à sonhos de Vidal, de tal maneira que certos acontecimento se
confundem com sonhos, mas a história em geral é marcada pelo pesadelo; as
descrições das formas de violência, a física (agressões, espancamentos e
assassinatos) e a simbólica (ofensas verbais contra as pessoas idosas e a
exaltação da juventude).
Um aspecto curioso, mas
não menos importante, se refere ao título do livro. Em espanhol o título é:
“Diário de la guerra del cerdo”. “Cerdo”, além de porco também pode ser traduzido
por “capado”. Isto é, o porco é capado para engordar mais e dar mais lucro na
hora da venda. Capar é extrair o órgão de reprodução do animal. Conclusão,
trata-se de um diário da guerra contra as pessoas castradas sexual, econômica e
socialmente.
O “Diário” expõe o cinismo da juventude, especialmente
quando a jovem estudante diz que “é contra a violência”, mas é omissa
socialmente; e, as dificuldades das pessoas idosas para se organizarem e
lutarem por sua defesa. O autor descreve muito bem um dos principais dilemas,
que é a dificuldade para identificar “os inimigos mortais das pessoas idosas”.
Livro: “Diário da guerra
do porco”
Autor: Adofo Bioy Casares
Editora: Biblioteca Azul
Coleção: Obras completas
de Adolfo Bioy Casares – Volume B
Ano: 2019
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