segunda-feira, 10 de agosto de 2020

“O novo coronavírus contaminou a Comunicação?”

 


        Todo bom "Café Filosófico" deve partir de um bom questionamento. O tema deste Café pretende enfrentar uma questão crucial para a Faculdade de Comunicação: que fazer após a contaminação da Comunicação?

            Sinteticamente podemos elencar alguns pressupostos para a abordagem deste problema:

            Considerando a quantidade enorme de notícias falsas circulando; a onda de negacionismo e anticientificismo; as campanhas contra as vacinas; as campanhas de criminalização dos professores, cientistas, pesquisadores, intelectuais.
            Considerando que as plataformas de mídias sociais foram omissas no trato da circulação de notícias falsas, do discurso de ódio e da criminalização da Política.
            Considerando que as mídias tradicionais adotaram a "doutrina do pensamento único" e legitimaram ideólogos do obscurantismo.
            Podemos constatar que o resultado desta onda obscurantista contaminou mortalmente a Comunicação: o novo coronavírus atingiu o pulmão, afetou o olfato e o paladar da Comunicação. E agora? A Comunicação irá para UTI, terá respiradores, algum tratamento, vacina?

            Estas e outras questões serão abordadas pela Profa. Eliane Salvatierra e pelo Prof. Daniel Ladeira.


Eliany Salvatierra Machado

Doutora em Ciência da Comunicação pela ECA-USP, Mestre em Ciência da Comunicação com Habilitação em Rádio e TV (2002), Especialista em Filosofia da Educação pela UFMS (1996) e Graduada em Artes Visuais, Licenciatura pela UFMS (1994). Professora da UFF - Universidade Federal Fluminense - Niterói/RJ, no Departamento de Cinema e Audiovisual - CINEVI/IACS; Especialista em Educomunicação (ECA-USP). Reside em Niterói (RJ).




Daniel Ladeira de Araújo

Doutor em Ciências na área de Comunicação e Cultura pela Universidade de São Paulo (USP)/Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM) com reconhecimento pela Universidade Nova de Lisboa, nas Faculdades de Ciências Sociais. Mestre em Comunicação pela Universidade Paulista. Possui graduação em Jornalismo pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas/Faculdades Integradas Alcântara Machado. Atualmente é Sócio Diretor da aKompas Educacional, onde dirige as áreas Pedagógica e de Comunicação. Foi Supervisor Pedagógico do Curso de Jornalismo da ESPM-SP e professor das disciplinas de História do Jornalismo e Planejamento de Comunicação. Além disso trabalhou durante 15 anos na área comercial da TV Globo SP onde atuou como Gerente de Operações Comerciais com projetos da Globo Internacional, Institucional, Merchandising e Promoções. Atualmente reside em Braga (Portugal).


            Para participa no Café Filosófico basta clicar no link abaixo:

https://meet.google.com/hvf-bavg-str


        As questões para o debate podem ser enviadas com antecedência e durante a realização do evento!


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Relato sobre um curso de férias na quarentena


Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro)


Curso sobre: “Filosofia, Literatura e Envelhecimento”


Datas: 08, 15, 22 e 29 de julho de 2020 (quartas-feiras)

Horário: 19h30

Duração de cada aula: 01h30


Pela internet - Plataforma Google Meet

Gratuito

20 vagas

Inscrições: proffrancisconunes@gmail.com


Público alvo: Profissionais que trabalham e/ou estudam com o tema Envelhecimento e demais profissionais interessados/as.


Faixa etária: intergeracional


Professor: Francisco José Nunes

Mestre em Ciências Sociais (PUC-SP), Graduado em Filosofia e Professor na Faculdade Paulista de Comunicação - FPAC (Av. Paulista, 2200).



Sobre o curso:


Ler, analisar e refletir sobre três contos da literatura brasileira que tratam da situação da pessoa idosa é um convite à Filosofia em tempo de pandemias.

No conto “O Enfermeiro”, de Machado de Assis, vamos encontrar duas figuras instigantes: o “enfermeiro” Procópio Valongo e o idoso Coronel Felisberto. Este conto sintetiza a “filosofia pessimista” de Machado de Assis: através do desvelamento da hipocrisia do sistema de valores das instituições da sociedade; através do convite à reflexão sobre o sentido da existência humana; e através do destaque que dá à importância das memórias na vida de uma pessoa.

No conto “O Famigerado”, de Guimarães Rosa, vamos encontrar no personagem Damázio “dos Siqueiras”, a pessoa idosa, que praticou ao longo da vida inúmeros assassinatos e crimes. Entretanto, ele encontra-se extremamente incomodado diante das dificuldades impostas pela linguagem culta. Damázio foi tratado por um funcionário público por “famigerado” e pretende saber o significado da palavra para tomar uma decisão. Alega que não pretende entrar em conflito com o Governo, porque não está mais “com saúde nem idade”. O genial Guimarães Rosa vai provocar uma rica reflexão sobre a “Filosofia da Linguagem”!

No conto “O Grande Passeio”, de Clarice Lispector, encontraremos a personagem “Mocinha”, uma pessoa idosa, negra, trabalhadora doméstica, com sinais de demência, sofrendo todo tipo de exclusão social. É um conto muito duro; retrata o pensamento comum da classe média brasileira. Clarice Lispector provoca um turbilhão de sentimentos e de questionamentos.

O curso seguiu três momentos: a) análise do conto; b) abertura para comentários e questionamentos; c) conclusões sobre a relação entre a análise literária e a reflexão filosófica.

O curso foi ministrado com base em três objetivos: 1) criar um ambiente de reflexão sobre o envelhecimento; 2) criar um grupo de estudo sobre Filosofia, Literatura e Conhecimentos Gerais; 3) criar uma rede de integração entre pessoas que buscam pelo conhecimento e pelos valores mais elevados dos seres humanos (a fraternidade, a partilha, a compaixão e a solidariedade).

Nelson Mandela dizia: “O verdadeiro caráter de uma sociedade é revelado pela forma como ela trata as suas crianças”. Também poderíamos dizer que: “O verdadeiro caráter de uma sociedade é revelado pela forma como ela trata as pessoas idosas”!


Programação


08/07: 

  1. Apresentação do curso;

  2. Integração dos e das participantes.


15/07: 

  1. Apresentação e análise do conto: “O Enfermeiro”, de Machado de Assis;

  2. Abertura para debate do conto;

  3. Conclusões e encaminhamento do próximo conto.

22/07

  1. Apresentação e análise do conto: “O Famigerado”, de Guimarães Rosa.

  2. Abertura para debate do conto;

  3. Conclusões e encaminhamentos do próximo conto.


29/07

  1. Apresentação e análise do conto: “O Grande Passeio”, de Clarice Lispector.

  2. Abertura para debate do conto;

  3. Conclusões da análise do conto e do curso;

  4. Avaliação da experiência.


Objetivos do curso:


  1. Criar um ambiente de reflexão sobre o tema Envelhecimento;

  2. Criar um grupo de estudo de Filosofia, Literatura e Conhecimentos Gerais;

  3. Criar uma rede de integração entre pessoas que buscam pelo conhecimento e pelos valores mais elevados dos seres humanos (a fraternidade, a partilha, a compaixão e a solidariedade).


Link dos contos:


  1. “O Enfermeiro”

https://esteticaemmovimento.blogspot.com/2020/06/conto-o-enfermeiro-de-machado-de-assis.html


  1. “O Famigerado”

https://esteticaemmovimento.blogspot.com/2020/06/conto-o-famigerado-de-guimaraes-rosa_22.html


  1. “O grande passeio”

https://esteticaemmovimento.blogspot.com/2020/06/conto-o-grande-passeio-de-clarice.html


Bibliografia


AQUINO, Leão de [et al.]. Sociedade Brasileira: uma História através    dos Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: Record, 2000.

ASSIS, Machado. “O Enfermeiro”, in: Várias Histórias. Belo Horizonte: Editora Garnier, 2010 [1896].

BEAUVOIR, Simone. A Velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018 [1970].

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix: 1982.

CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos Pré-Socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

LISPECTOR, Clarice. “O Grande Passeio”, in: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1971.

MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

REDONDO, Tércio. De luz e de sombras: uma análise de “O Enfermeiro”, de Machado de Assis. Revista Magma n. 5, p. 83-87, 1998.

ROSA, Guimarães. “O Famigerado”, in: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962.

SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.

WISNIK, José Miguel. O Famigerado. Revista Scripta, Belo Horizonte, v. 5, n. 10, p. 177-198, 1. sem. 2002.


quarta-feira, 5 de agosto de 2020

A Bomba Atômica em Hiroshima e Nagasaki, 75 anos depois.



A Bomba Atômica em Hiroshima e Nagasaki, 75 anos depois.
(Autor: Francisco José Nunes)

No dia 6 de agosto de 1945 a cidade japonesa de Hiroshima foi atingida pela primeira bomba atômica da história da humanidade.

Eram 8h15 da manhã (hora local) quando o Boeing B-29, pilotado por Paul Tibbets, atirou a bomba, resultando na morte de cerca de 140 mil pessoas.

O avião foi batizado com o nome de “Enola Gay”, nome da mãe do piloto. Após afastar-se do local da explosão, o copiloto Robert Lewis, observou o tamanho da tragédia e indagou: “Deus, o que fizemos”?

Esta bomba não foi suficiente para obrigar o Imperador Hirohito a assinar o acordo de rendição.
No dia 9 de agosto, às 11h02, os EUA atiraram a segunda bomba atômica, desta vez na cidade de Nagasaki, resultando na morte de cerca de 70 mil pessoas.

A bomba atômica, além dos efeitos materiais, também resultou em inúmeros efeitos simbólicos. Dentre eles, o nascimento da “Pós-Modernidade”. Esta “condição pós-moderna” que os filósofos identificaram ao longo da segunda metade do Século XX.

A eclosão da Primeira e da Segunda Guerra Mundial , culminando com a explosão da bomba atômica, colocou em xeque os ideais da Modernidade. Caracterizada pela supervalorização: da Razão, da democracia burguesa e do desenvolvimento tecnológico. A morte de milhões de pessoas e a destruição de vários países, principalmente na Europa, evidenciou a “crise da Modernidade”. Algumas das questões colocadas foram: por que a Razão é incapaz de deter a barbárie? Por que o fascismo e o nazismo nasceram na Europa? Este modelo de “Civilização Ocidental Cristã” deve ser a referência para a humanidade?

A bomba atômica desencadeou uma série de mudanças na maior parte da humanidade. Dentre elas destacamos duas: o neo-individualismo e a despolitização.

Diferentemente do individualismo da modernidade (indivíduo livre e autônomo, superando o coletivismo da Idade Média e se apropriando das conquistas da Revolução Francesa), o neo-individualismo pós-moderno é caracterizado pelo descompromisso, pelo “não tô nem aí” e mais recentemente pela expressão popular: “foda-se”.

São características desse neo-individualismo: o narcisismo, o hedonismo e o conformismo. O narcisismo centrado no culto ao próprio corpo, atingindo uma espécie de “corpolatria”. Caracterizado pela grande ocupação de tempo na academia de educação física, exercitando os músculos; e, nos salões de beleza cuidando da estética pessoal.

O hedonismo ocupa o principal objetivo na vida da pessoa; adota-se o lema “Carpe diem”, isto é, aproveite o momento. Só faça coisas que proporcionem prazer e, de preferência, o prazer imediato.

O conformismo, porque busca adaptar-se às circunstâncias, sem desejo de transformar a sociedade.

Vinculado a este comportamento, emerge a despolitização. O “sujeito pós-moderno” não participa em eleições e nem em outras formas de organização que impliquem em responsabilidades sociais e políticas; dá as costas para as grandes causas, tais como: a luta pela paz, o combate à fome, a luta contra as desigualdades sociais e econômicas.

Após 75 anos das bombas atômicas atiradas no Japão e em plena pandemia do COVID-19, somos desafiados a pensar sobre o sentido da existência humana. De acordo com os filósofos e filósofas existencialistas: o ser humano é “lançado ao mundo”, como um bebê quando nasce. É um ser imperfeito, inacabado e aberto para se fazer e se refazer. Mas a autoconstrução não se faz por si só, ela também depende das circunstâncias históricas. E, na medida em que o ser humano constrói a sua própria existência, ele também deve lutar para que as circunstâncias sociais mudem para melhor.

Os filósofos e filósofas existencialistas alertam para o fato de que a existência não consiste numa longa jornada marcada pelo crescimento, pelo sucesso e pelo progresso. Também faz parte da existência as doenças, as guerras, as injustiças, o envelhecimento e a morte. Portanto, é indispensável, a luta constante contra a exploração social, o enfrentamento da angústia interior e de todo tipo de sofrimento humano.

Em suma, existir implica na relação da pessoa consigo mesma, com as outras pessoas, com a natureza, os animais e com as coisas. Um enfrentamento constante, mas libertador e parte fundamental na construção de uma sociedade onde caibam todos e todas. Uma sociedade que valorize a vida e a vida em plenitude.

Sugestões:

1) O estudo sobre a Pós-Modernidade é vasto. Recomendo para introdução o livro: “O que é pós-moderno”, do escritor Jair Ferreira dos Santos, da Coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense.

2) Sobre o Existencialismo, corrente filosófica importantíssima principalmente no Século XX, tem uma quantidade enorme de livros, filmes, documentários, peças de teatro etc. Recomendo como introdução o livro: “O Existencialismo é um Humanismo”, de Jean-Paul Sartre.

3) Sobre a Bomba de Hiroshima, o poeta e diplomata Vinícius de Moraes não ficou indiferente! Em 1954 ele publicou o poema “Rosa de Hiroshima”, que foi musicado em 1973 por Gerson Conrad, integrante da “Banda Secos e Molhados”. Esta música foi gravada pelo Ney Matogrosso e entrou para a lista das 100 melhores músicas brasileiras, segundo a Revista Rolling Stone.

Ney Matogrosso - Rosa de Hiroshima

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Conto: "O grande passeio", de Clarice Lispector


Era uma velha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo. Os olhos lacrimejavam sempre, as mãos repousavam sobre o vestido preto e opaco, velho documento de sua vida. No tecido já endurecido encontravam-se pequenas crostas de pão coladas pela baba que lhe ressurgia agora em lembrança do berço. Lá estava uma nódoa amarelada, de um ovo que comera há duas semanas. E as marcas dos lugares onde dormia. Achava sempre onde dormir, casa de um, casa de outro. Quando lhe perguntavam o nome, dizia com a voz purificada pela fraqueza e por longuíssimos anos de boa educação: – Mocinha.

As pessoas sorriam. Contente pelo interesse despertado, explicava: – Nome, nome mesmo, é Margarida.


O corpo era pequeno, escuro, embora ela tivesse sido alta e clara. Tivera pai, mãe, marido, dois filhos. Todos aos poucos tinham morrido. Só ela restara com os olhos sujos e expectantes quase cobertos por um tênue veludo branco. Quando lhe davam alguma esmola davam-lhe pouca, pois ela era pequena e realmente não precisava comer muito. Quando lhe davam cama para dormir davam-lhe estreita e dura porque Margarida fora aos poucos perdendo volume. Ela também não agradecia muito: sorria e balançava a cabeça.


Dormia agora, não se sabia mais por que motivo, no quarto dos fundos de uma casa grande, numa rua larga cheia de árvores, em Botafogo. A família achava graça em Mocinha mas esquecia-se dela a maior parte do tempo. É que também se tratava de uma velha misteriosa.



Levantava-se de madrugada, arrumava sua cama de anão e disparava lépida como se a casa estivesse pegando fogo. Ninguém sabia por onde andava. Um dia uma das moças da casa perguntou-lhe o que andava fazendo. Respondeu com um sorriso gentil: – Passeando.

Acharam graça que uma velha, vivendo de caridade, andasse a passear. Mas era verdade.

Mocinha nascera no Maranhão, onde sempre vivera. Viera para o Rio não há muito, com uma senhora muito boa que pretendia interná-la num asilo, mas depois não pudera ser: a senhora viajara para Minas e dera algum dinheiro para Mocinha se arrumar no Rio. E a velha passeava para ficar conhecendo a cidade. Bastava aliás uma pessoa sentar-se num banco de uma praça e já via o Rio de Janeiro.
Sua vida corria assim sem atropelos, quando a família da casa de Botafogo um dia surpreendeu-se de tê-la em casa há tanto tempo, e achou que assim também era demais. De algum modo tinham razão. Todos lá eram muito ocupados, de vez em quando surgiam casamentos, festas, noivados, visitas. E quando passavam atarefados pela velha, ficavam surpreendidos como se fossem interrompidos, abordados com uma pancadinha no ombro: “olha!” Sobretudo uma das moças da casa sentia um mal-estar irritado, a velha enervava-a sem motivo. Sobretudo o sorriso permanente, embora a moça compreendesse tratar-se de um ricto inofensivo. Talvez por falta de tempo, ninguém falou no assunto. Mas logo que alguém cogitou de mandá-la morar em Petrópolis, na casa da cunhada alemã, houve uma adesão mais animada do que uma velha poderia provocar.

Quando, pois, o filho da casa foi com a namorada e as duas irmãs passar um fim-de-semana em Petrópolis, levou a velha no carro.
Por que Mocinha não dormiu na noite anterior? A idéia de uma viagem, no corpo endurecido o coração se desenferrujava todo seco e descompassado, como se ela tivesse engolido uma pílula grande sem água. Em certos momentos nem podia respirar. Passou a noite falando, às vezes alto. A excitação do passeio prometido e a mudança de vida, de repente aclaravam-lhe algumas idéias. 
Lembrou-se de coisas que dias antes juraria nunca terem existido. A começar pelo filho atropelado, morto debaixo de um bonde no Maranhão – se ele tivesse vivido no tráfego do Rio de Janeiro, aí mesmo é que morria atropelado. Lembrou-se dos cabelos do filho, das roupas dele. Lembrou-se da xícara que Maria Rosa quebrara e de como ela gritara com Maria Rosa. Se soubesse que a filha morreria de parto, é claro que não precisaria gritar. E lembrou-se do marido. Só relembrava o marido em mangas de camisa. Mas, não era possível, estava certa de que ele ia à repartição com o uniforme de contínuo, ia a festas de paletó, sem falar que não poderia ter ido ao enterro do filho e da filha em mangas de camisa. A procura do paletó do marido ainda mais cansou a velha que se virava com leveza na cama. De repente descobriu que a cama era dura.
– Que cama dura – disse bem alto no meio da noite.
É que se sensibilizara toda. Partes do corpo de que não tinha consciência há longo tempo reclamavam agora a sua atenção. E de súbito – mas que fome furiosa! Alucinada, levantou-se, desamarrou a pequena trouxa, tirou um pedaço de pão com manteiga ressecada que guardava secretamente há dois dias. Comeu o pão como um rato, arranhando até o sangue os lugares da boca onde só havia gengiva. E com a comida, cada vez mais se reanimava. Conseguiu, embora fugazmente, ter a visão do marido se despedindo para ir ao trabalho. Só depois que a lembrança se desvaneceu, viu que esquecera de observar se ele estava ou não em mangas de camisa. Deitou-se de novo, coçando-se toda ardente. Passou o resto da noite nesse jogo de ver por um instante e depois não conseguir ver mais. De madrugada adormeceu.
E pela primeira vez foi preciso acordá-la. Ainda no escuro, a moça veio chamá-la, de lenço amarrado na cabeça e já de maleta na mão. Inesperadamente Mocinha pediu uns instantes para pentear os cabelos. As mãos trêmulas seguravam o pente quebrado. Ela se penteava, ela se penteava. Nunca fora mulher de ir passear sem antes pentear bem os cabelos.

Quando enfim se aproximou do automóvel, o rapaz e as moças se surpreenderam com seu ar alegre e com os passos rápidos. “Tem mais saúde do que eu!”, brincou o rapaz. À moça da casa ocorreu: “E eu que até tinha pena dela”.

Mocinha sentou-se junto da janela do carro, um pouco apertada pelas duas irmãs acomodadas no mesmo banco. Nada dizia, sorria. Mas quando o automóvel deu a primeira arrancada, jogando-a para trás, sentiu dor no peito. Não era só por alegria, era um dilaceramento.

O rapaz virou-se para trás: – Não vá enjoar, vovó!

As moças riram, principalmente a que se sentara na frente, a que de vez em quando encostava a cabeça no ombro do rapaz. Por cortesia, a velha quis responder, mas não pôde. Quis sorrir, não conseguiu. Olhou para todos, com olhos lacrimejantes, o que os outros já sabiam que não significava chorar. Qualquer coisa em seu rosto amorteceu um pouco a alegria da moça da casa e deu-lhe um ar obstinado.
A viagem foi muito bonita.

As moças estavam contentes, Mocinha agora já recomeçara a sorrir. E, embora o coração batesse muito, tudo estava melhor. Passaram por um cemitério, passaram por um armazém, árvore, duas mulheres, um soldado, gato! letras – tudo engolido pela velocidade.
Quando Mocinha acordou não sabia mais onde estava. A estrada já havia amanhecido totalmente: era estreita e perigosa. A boca da velha ardia, os pés e as mãos distanciavam-se gelados do resto do corpo. As moças falavam, a da frente apoiara a cabeça no ombro do rapaz.

Os embrulhos despencavam a todo instante.

Então a cabeça de Mocinha começou a trabalhar. O marido apareceu-lhe de paletó – achei, achei! o paletó estava pendurado o tempo todo no cabide. Lembrou-se do nome da amiga de Maria Rosa, daquela que morava defronte: Elvira, e a mãe de Elvira até era aleijada. As lembranças quase lhe arrancavam uma exclamação. Então ela movia os lábios devagar e dizia baixo algumas palavras.
As moças falavam: – Ah, obrigada, um presente desses eu rejeito!
Foi quando Mocinha começou finalmente a não entender. Que fazia ela no carro? como conhecera seu marido e onde? como é que a mãe de Maria Rosa e Rafael, a própria mãe deles, estava no automóvel com aquela gente? Logo depois acostumou-se de novo.
O rapaz disse para as irmãs: – Acho melhor não pararmos defronte, para evitar histórias. Ela salta do carro, a gente ensina aonde é, ela vai sozinha e dá o recado de que é para ficar.
Uma das moças da casa perturbou-se: receava que o irmão, com uma incompreensão típica de homem, falasse demais diante da namorada. Eles não visitavam mais o irmão de Petrópolis, e muito menos a cunhada.

– É sim, interrompeu-o a tempo antes que ele falasse demais. Olha, Mocinha, você entra por aquele beco e não há como errar: na casa de tijolo vermelho, você pergunta por Arnaldo, meu irmão, ouviu? Arnaldo. Diz que lá em casa você não podia mais ficar, diz que na casa de Arnaldo tem lugar e que você até pode vigiar um pouco o garoto, viu.

Mocinha desceu do automóvel, e durante um tempo ainda ficou de pé mas pairando entontecida sobre rodas. O vento fresco soprava-lhe a saia comprida por entre as pernas.

Arnaldo não estava. Mocinha entrou na saleta onde a dona da casa, com um pano contra pó amarrado na cabeça, tomava café. Um menino louro – decerto aquele que Mocinha deveria vigiar – estava sentado diante de um prato de tomates e cebolas e comia sonolento, enquanto as pernas brancas e sardentas balançavam-se sob a mesa. A alemã encheu-lhe o prato de mingau de aveia, empurrou-lhe na mesa pão torrado com manteiga. As moscas zuniam.

Mocinha estava fraca. Se bebesse um pouco de café quente talvez passasse o frio no corpo.

A mulher alemã examinava-a de vez em quando em silêncio: não acreditara na história da recomendação da cunhada, embora “de lá” tudo fosse de se esperar. Mas talvez a velha tivesse ouvido de alguém o endereço, até num bonde, por acaso, isso às vezes acontecia, bastava abrir um jornal e ver que acontecia. É que aquela história não estava nada bem contada, e a velha tinha um ar sabido, nem sequer escondia o sorriso. O melhor seria não deixá-la sozinha na saleta, com o armário cheio de louça nova.
– Preciso antes tomar café, disse-lhe. Depois que meu marido chegar, veremos o que se pode fazer.

Mocinha não entendeu muito bem, pois ela falava como gringa. Mas entendeu que era para continuar sentada. O cheiro de café dava-lhe vontade, e uma vertigem que escurecia a sala toda.
Os lábios ardiam secos e o coração batia todo independente. Café, café, olhava ela sorrindo e lacrimejando. A seus pés o cachorro mordia a própria pata, rosnando. A empregada, também meio gringa, alta, de pescoço muito fino e seios grandes, a empregada trouxe um prato de queijo branco e mole. Sem uma palavra, a mãe esmagou bastante queijo no pão torrado e empurrou-o para o lado do filho. O menino comeu tudo e, com a barriga grande, agarrou um palito e levantou-se: – Mãe, cem cruzeiros.

– Não. Para quê?

– Chocolate.

– Não. Amanhã é que é domingo.

Uma pequena luz iluminou Mocinha: domingo? que fazia naquela casa em vésperas de domingo? Nunca saberia dizer. Mas bem que gostaria de tomar conta daquele menino. Sempre gostara de criança loura: todo menino louro se parecia com o Menino Jesus. O que fazia naquela casa? Mandavam-na à toa de um lado para outro, mas ela contaria tudo, iam ver. Sorriu encabulada: não contaria era nada, pois o que queria mesmo era café.

A dona da casa gritou para dentro, e a empregada indiferente trouxe um prato fundo, cheio de papa escura. Gringos comiam muito de manhã, isso Mocinha vira mesmo no Maranhão. A dona da casa, com seu ar sem brincadeiras porque gringo em Petrópolis era tão sério como no Maranhão, a dona da casa tirou uma colherada de queijo branco, triturou-o com o garfo e misturou-o à papa. Para dizer verdade, porcaria mesmo de gringo. Pôs-se então a comer, absorta, com o mesmo ar de fastio que os gringos do Maranhão têm. Mocinha olhava. O cachorro rosnava às pulgas.
Afinal Arnaldo apareceu em pleno sol, a cristaleira brilhando. Ele não era louro. Falou em voz baixa com a mulher, e depois de demorada confabulação, informou firme e curioso para Mocinha: – Não pode ser não, aqui não tem lugar não.
E como a velha não protestasse e continuasse a sorrir, ele falou mais alto: – Não tem lugar não, ouviu?
Mas Mocinha continuava sentada. Arnaldo ensaiou um gesto. Olhou para as duas mulheres na sala e vagamente sentiu o cômico do contraste. A esposa esticada e vermelha. E mais adiante a velha murcha e escura, com uma sucessão de peles secas penduradas nos ombros. Diante do sorriso malicioso da velha, ele se impacientou: – E agora estou muito ocupado! Eu lhe dou dinheiro e você toma o trem para o Rio, ouviu?

Volta para a casa de minha mãe, chega lá e diz: casa de Arnaldo não é asilo, viu? aqui não tem lugar. Diz assim: casa de Arnaldo não é asilo não, viu!

Mocinha pegou no dinheiro e dirigiu-se à porta. Quando Arnaldo já ia se sentar para comer, Mocinha reapareceu: – Obrigada, Deus lhe ajude.

Na rua, de novo pensou em Maria Rosa, Rafael, o marido. Não sentiu a menor saudade.

Mas lembrava-se. Dirigiu-se para a estrada, afastando-se cada vez mais da estação. Sorriu como se pregasse uma peça a alguém: em vez de voltar logo, ia antes passear um pouco. Um homem passou. Então uma coisa muito curiosa, e sem nenhum interesse, foi iluminada: quando ela era ainda uma mulher, os homens. Não conseguia ter uma imagem precisa das figuras dos homens, mas viu a si própria com blusas claras e cabelos compridos. A sede voltou-lhe, queimando a garganta. O sol ardia, faiscava em cada seixo branco. A estrada de Petrópolis é muito bonita.
No chafariz de pedra negra e molhada, em plena estrada, uma preta descalça enchia uma lata de água.
Mocinha ficou parada, espreitando. Viu depois a preta reunir as mãos em concha e beber.

Quando a estrada ficou de novo vazia, Mocinha adiantou-se como se saísse de um esconderijo e aproximou-se sorrateira do chafariz. Os fios de água escorreram geladíssimos por dentro das mangas até os cotovelos, pequenas gotas brilharam suspensas nos cabelos.
Saciada, espantada, continuou a passear com os olhos mais abertos, em atenção às voltas violentas que a água pesada dava no estômago, acordando pequenos reflexos pelo resto do corpo como luzes.

A estrada subia muito. A estrada era mais bonita que o Rio de Janeiro, e subia muito.

Mocinha sentou-se numa pedra que havia junto de uma árvore, para poder apreciar. O céu estava altíssimo, sem nenhuma nuvem. E tinha muito passarinho que voava do abismo para a estrada. A estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde. Então, como estava cansada, a velha encostou a cabeça no tronco da árvore e morreu.
Livro: “Felicidade clandestina”, de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 1971.