quarta-feira, 30 de março de 2022

O filme "A Tabacaria" e os desafios do nosso tempo

 


O filme “A Tabacaria” e os desafios do nosso tempo

 Por: Francisco José Nunes


Poderia Freud ser um conselheiro amoroso?

Pois é, o filme “A Tabacaria”, do diretor austríaco Nikolaus Leytner, baseado no romance de mesmo nome, escrito por Robert Seethaler, usa este artifício para tratar de diversos temas altamente relevantes. Inclusive as relações amorosas.

Mas não se trata de um filme água com açúcar, para ser exibido na sessão da tarde. Muito pelo contrário, trata de inúmeros conflitos, situados especialmente na década de 1930, em Viena.

O filme conta a história de Franz, um jovem de 17 anos, que vive no interior da Áustria e é obrigado a migrar para Viena, em busca de trabalho. O filme recorre a inúmeras cenas de realismo fantástico, muito semelhantes às dos filmes de Lars Von Trier, como por exemplo: “Melancolia” e “O Anticristo”.

Logo no início do filme, Franz está mergulhado no fundo do Lago Attersee, enquanto sua mãe está mantendo relações sexuais com o companheiro, embaixo de uma árvore. Quando começa uma tempestade e Franz corre para dentro de casa. O companheiro de sua mãe corre para dar um mergulho no lago, mas ele morre, vítima de um raio que caiu no lago naquele momento. Sua mãe, Margarete, não chora, porque sabe que o companheiro morreu feliz e ela precisará cuidar do filho.

Diante da morte do seu provedor, Margarete sente-se obrigada a enviar o filho para ir trabalhar em Viena, a capital da Áustria. Franz não quer abandonar aquela vida idílica. Ele mergulha em um tonel com água e fica respirando com a ajuda de um canudinho. Mas é encontrado e enviado de trem para Viena, para trabalhar na tabacaria de um ex-amante de sua mãe, Otto Trsnjek, um homem combativo, que lutou na 1ª Guerra Mundial e perdeu uma das pernas no campo de batalha.

Para iniciar o seu trabalho, Franz começa a conhecer as características dos produtos vendidos na tabacaria, especialmente os charutos cubanos. Os preferidos de um cliente mais do que especial, Sigmund Freud. O jovem interiorano começa a se adaptar à vida na capital, sua agitação urbana, o comércio, as festas e tudo mais. Neste ínterim conhece a jovem Anezka e se apaixona por ela. Mas misteriosamente ela desaparece. Depois de muitos percalços, descobre que ela é dançarina de cabaré. No estilo vaudeville, muito comum no final do século XIX e início do século XX. Eram casas de espetáculo com apresentações de dançarinas, músicos populares e eruditos, mágicos, comediantes, imitadores etc. É nesta oportunidade que Franz mantém sua primeira relação sexual. Mas Anezka some novamente, causando muita angústia em Franz.

Quando Franz vai até ao cabaré pela primeira vez, assiste a uma apresentação de um humorista que ridiculariza Hitler. Tempos depois, assiste a um comediante que faz piadas antissemitas para agradar os oficiais nazistas que estão assistindo a apresentação.

Neste período, Franz faz amizade com Freud e começa a pedir conselhos amorosos. Mas, de cara, o “Pai da Psicanálise” diz: “Ninguém sabe nada do amor; muito menos eu”. Entretanto, Franz não desiste e os bate-papos entre ambos passam a ser frequentes.

Esta história está situada na década de 1930, período em que o movimento nazista passa a influenciar fortemente a Áustria, até culminar com a anexação de seu território pela Alemanha, em 12 de março de 1938. A tabacaria de Otto passa a sofrer vários ataques, entre eles diversas pichações, dizendo que aquele estabelecimento vendia para judeus e comunistas. Uma das pichações foi escrita com sangue de animais. Provavelmente feita pelo açougueiro, que ficava na mesma calçada da tabacaria e era simpatizante no nazismo.

O filme aborda especialmente dois grandes temas: a Psicanálise e o Nazismo. No campo da Psicanálise faz referências aos estudos sobre a interpretação dos sonhos e aos estudos sobre a sexualidade.

Franz relata para Freud seus sonhos e pesadelos. Freud recomenda a Franz que mantenha papel e caneta ao lado da cama, para anotar os sonhos logo que acordar. Infelizmente, no filme, Freud não analisa os sonhos de Franz. E, quanto à sexualidade, o filme vai apresentar todos os conflitos relacionados com os tabus sexuais, as repressões e o conservadorismo tão prejudicial à vivência de uma sexualidade saudável e sem opressões.


A cena inicial do filme faz uma relação entre o gozo e a tempestade.

No que se refere ao Nazismo, o filme mostra as várias situações do cotidiano em que as ideias fascistas vão penetrando. Principalmente através do homem comum, o homem medíocre, o machista, ignorante, alienado, que convive com várias frustrações e recalques.

É importante lembrar que a Áustria sempre cultivou um ambiente antissemita. Por exemplo, os músicos judeus eram proibidos de fazerem parte da Ópera da Corte de Viena, no século XIX. Só admitiam músicos católicos. Por este motivo, o maestro judeu Gustav Mahler se converteu ao catolicismo para poder tocar em Viena.

O ator que faz o personagem de Freud é Bruno Ganz, o mesmo que ficou popular ao representar Hitler, no filme “A Queda: as últimas horas de Hitler”. Um excelente ator! Mas faleceu em fevereiro de 2019.

O filme apresenta Freud no auge de suas capacidades, mas frágil diante do Nazismo. Em 1938, depois de inúmeras agressões por parte dos nazistas, Freud decide migrar para a Inglaterra. No dia 4 de junho deixou Viena, com 82 anos de idade. No ano seguinte, em Londres, faleceu no dia 23 de setembro.

É paradoxal assistir a este filme e comentá-lo, sabendo que a qualquer momento poderemos ser perseguidos e possivelmente mortos por defendermos os direitos trabalhistas, os direitos sociais e o meio ambiente; lutarmos contra o machismo, o feminismo, o racismo, a homofobia e a transfobia.


Autor:

Francisco José Nunes

Mestre em Ciências Sociais - PUC-SP; Graduado em Filosofia; Professor na Faculdade Paulista de Comunicação - FPAC. 


Serviço:

Filme: A Tabacaria (2018) - 1h57min.

Direção: Nikolaus Leytner

Plataformas: Telecine, Apple TV, Now, Google Play.


P.S.: Esta resenha foi publicada originalmente no site "Construir Resistência", no dia 13 de agosto de 2021.

segunda-feira, 28 de março de 2022

São Petersburgo, a cidade de gelo

 

Cartaz do filme "Cidade de Gelo"

“São Petersburgo, a cidade de gelo”


Autor: Francisco José Nunes



Análise do filme, sem spoiler!


Filme: Cidade de Gelo (2021) - 2h16min

Título em russo: Serebyanye Komki

Título em inglês: The Silver Skates

Plataforma: Netflix


Direção: Mikhail Lockshin


O filme Cidade de Gelo não é apenas um drama romântico. Ele é um mergulho na Rússia, em sua fase mais acelerada rumo à Revolução de 1917. O berço dessa revolução é a cidade de São Petersburgo.

O filme trata do romance entre Matvey (Fedor Fedotov), um jovem proletário, e Alice (Sofia Priess), uma jovem da aristocracia russa. Matvey trabalha como entregador para uma confeitaria chique de São Petersburgo, a “Le Grand Pie”. Entretanto, certo dia ao receber a tarefa de entregar uma encomenda com urgência, ele não consegue entregar dentro do prazo previsto. A consequência é que ele foi demitido e humilhado pelo proprietário da confeitaria. O motivo do problema foi a interrupção de uma das principais avenidas de São Petersburgo para a passagem da carruagem de um membro da aristocracia local.

Cabisbaixo, Matvey cruza o caminho de Alexey (Yuriy Borisov), chefe de uma gangue de batedores de carteiras. Mas essa gangue tem suas peculiaridades, por um lado o estilo Robin Hood e por outro lado a simpatia com as ideias marxistas que fervilhavam na Rússia, nas últimas décadas do Século XIX. Além de estar desempregado, Matvey também está preocupado com seu pai - Pietr - pois ele está com um estágio avançado de tuberculose e precisa de muito dinheiro para fazer um tratamento especializado. Por este motivo Matvey entra para a gangue. O pai de Matvey trabalha como acendedor de lampiões de rua, ele precisa acender 50 lampiões no início da noite e apagar os mesmos lampiões na manhã seguinte. Um trabalho miserável!

Depois de um certo tempo, Matvey mostra uma grande quantidade de dinheiro para seu pai. Mas o pai não aceita porque desconfia que a origem do dinheiro tenha sido o roubo. Ocorre uma discussão muito tensa entre pai e filho, culminando numa declaração de Matvey que coloca em dúvida a existência de Deus. Trata-se de uma referência ao pensamento niilista, que nasceu na Rússia durante o Século XIX.


Foto: Entrada do Museu Hermitage, em São Petersburgo 

(Palácio de Inverno na época do Czarismo)

Foto do autor



Durante uma das andanças noturnas da gangue pelas ruas de São Petersburgo, Matvey identifica no portão de uma mansão o mesmo brasão da carruagem que interrompeu a avenida e que foi o principal motivo para sua demissão como entregador da confeitaria. Então a gangue decide entrar no jardim da mansão e deixar sua marca no palácio. Mas ao subir em uma das sacadas do palácio, Matvey conhece Alice. Ocorre um acidente e ele vai embora rápido.

Alice é uma jovem que recebe a educação tradicional da aristocracia russa. Ela tem uma preceptora inglesa, que ministra lições de etiqueta, língua inglesa e cultural geral. O desejo de Alice é fazer faculdade de Química. Mas seu pai, Nikolai Vyazemsky (Ministro do Czar), é contra o acesso de mulheres ao ensino superior. Ela queria ser aluna do cientista Sergey Koltakov. Esse personagem representa o cientista Dmitri Mendeleev, o criador da “Tabela Periódica dos Elementos Químicos”, que era professor em São Petersburgo. Mendeleev nasceu na Sibéria e durante sua adolescência recebeu aulas de Ciências de seu cunhado Bessagrin, um simpatizante do “Movimento Dezembrista”. Este movimento defendia uma “monarquia parlamentar” e várias ideias progressistas. Mendeleev irá defender essas ideias ao longo de sua vida, inclusive o direito das mulheres ao ensino superior.

Numa determinada cena do filme Alice recebe um presente de Alexey (o líder da gangue) o volume I da obra “O Capital”, de Karl Marx. A primeira tradução desse livro, escrito em alemão, para outra língua, foi justamente para a língua russa. A primeira edição em russo foi publicada em 1872, cinco anos depois da publicação da edição original em alemão e quinze anos antes da tradução para o inglês.

Mais adiante o pai de Alice dá um flagrante no quarto dela e a encontra lendo “O Capital”. Ele diz que ela está influenciada por ideias "dezembristas" e manda queimar imediatamente todos os livros dela. É importante registrar que no período em que ocorre o filme, final de 1899 e início de 1900, Lênin exerce uma grande influência em São Petersburgo. Ele participou da criação do partido “União da Luta pela Libertação da Classe Operária”, em 1895; mas foi preso em 1897 e enviado para cumprir pena na Sibéria até 1900. Lênin fez faculdade de Direito em São Petersburgo e sempre foi um aluno brilhante.

O contexto histórico do filme é muito importante, porque trata da última fase do czarismo e da fase anterior à Revolução de 1917. O Czar Nicolau II, que exerceu o poder de 1894 até 1917, era um governante indeciso e inexperiente. Para comemorar a sua entronização, foi anunciada uma festa popular com comida, bebida e entrega de brindes para o povo. Entretanto, o precário planejamento da festa resultou numa grande tragédia, no dia 18 de maio de 1896. O grande número de pessoas que se dirigiu para o Campo de Khodynka (em Moscou) e a falta de organização adequada resultou na morte de cerca de 1.500 pessoas pisoteadas e no ferimento de cerca de 20.000 pessoas. Por este e por outros motivos, Nicolau II ganhou o apelido de “o Sanguinário”.

O filme tem um roteiro leve e ágil; tem uma boa mescla de romance, humor e fantasia. Adota inúmeras referências cinematográficas, dentre elas: “Titanic”, “Romeu e Julieta”, “Robin Hood”, com uma estética dos “Contos de fadas da Disney”. Isso pode transformar o filme num bom passatempo.

Na trilha sonora, o melhor da música clássica: Debussy, Bach, Haydn, Wagner, Strauss e Tchaikovsky. O músico russo Piotr Tchaikovski estudou em São Petersburgo, na França e na Alemanha. Quando retornou para a Rússia (1879) foi tratado como um músico “excessivamente ocidental”. Foi graças a uma campanha encabeçada pelo escritor Dostoievski, que a obra de Tchaikovsky passou a ser tratada como uma “música universal” e bem aceita na Rússia. O músico e o escritor, dois gênios que viveram em São Petersburgo neste período. Tchaikovsky morreu em 1893 e Dostoievski em 1881. Em novembro de 2021 vamos comemorar o "Bicentenário do nascimento de Dostoievski".



Cartaz de celebração do "Centenário da Revolução Russa",
em novembro de 2017, em São Petersburgo. Foto do autor.



Vale a pena assistir o filme também pelas imagens de São Petersburgo e seus arredores. A cidade é linda o ano todo, mas no inverno tem suas peculiaridades. As locações foram feitas: no Palácio de Inverno (sede do governo czarista e atualmente o Museu Hermitage); no Palácio de Mármore (às margens do Rio Neva); na Fortaleza de Pedro e Paulo (presídio destinado aos revolucionários, dentre eles: Dostoievski, Máximo Gorki, Lyudmila Stal, Leon Trotsky, Alexander Ulyanov (irmão de Lênin); na Estação Ferroviária Vitebsky; Palácio Gatchina, Palácio Sheremetev, Palácio Yusupov (ao lado do Rio Moika, palácio onde ocorreu o assassinato de Rasputin); Museu de Artes Aplicadas de Stieglitz, dentre outros.

Sugestão:

Para contextualizar melhor o filme, assista a série: “Os últimos czares” (2019), também da Netflix.


Autor:

Francisco José Nunes

(Mestre em Ciências Sociais - PUC-SP; Graduado em Filosofia; Professor na Faculdade Paulista de Comunicação - FPAC; visitou São Petersburgo em novembro de 2017, durante as comemorações do Centenário da Revolução Russa)


P.S.: Esse artigo foi publicada originalmente no site "Construir Resistência", no dia 14/07/2021.