O filme “A Tabacaria” e os desafios do nosso tempo
Por: Francisco José Nunes
Poderia Freud ser um conselheiro amoroso?
Pois é, o filme “A Tabacaria”, do diretor austríaco Nikolaus Leytner, baseado no romance de mesmo nome, escrito por Robert Seethaler, usa este artifício para tratar de diversos temas altamente relevantes. Inclusive as relações amorosas.
Mas não se trata de um filme água com açúcar, para ser exibido na sessão da tarde. Muito pelo contrário, trata de inúmeros conflitos, situados especialmente na década de 1930, em Viena.
O filme conta a história de Franz, um jovem de 17 anos, que vive no interior da Áustria e é obrigado a migrar para Viena, em busca de trabalho. O filme recorre a inúmeras cenas de realismo fantástico, muito semelhantes às dos filmes de Lars Von Trier, como por exemplo: “Melancolia” e “O Anticristo”.
Logo no início do filme, Franz está mergulhado no fundo do Lago Attersee, enquanto sua mãe está mantendo relações sexuais com o companheiro, embaixo de uma árvore. Quando começa uma tempestade e Franz corre para dentro de casa. O companheiro de sua mãe corre para dar um mergulho no lago, mas ele morre, vítima de um raio que caiu no lago naquele momento. Sua mãe, Margarete, não chora, porque sabe que o companheiro morreu feliz e ela precisará cuidar do filho.
Diante da morte do seu provedor, Margarete sente-se obrigada a enviar o filho para ir trabalhar em Viena, a capital da Áustria. Franz não quer abandonar aquela vida idílica. Ele mergulha em um tonel com água e fica respirando com a ajuda de um canudinho. Mas é encontrado e enviado de trem para Viena, para trabalhar na tabacaria de um ex-amante de sua mãe, Otto Trsnjek, um homem combativo, que lutou na 1ª Guerra Mundial e perdeu uma das pernas no campo de batalha.
Para iniciar o seu trabalho, Franz começa a conhecer as características dos produtos vendidos na tabacaria, especialmente os charutos cubanos. Os preferidos de um cliente mais do que especial, Sigmund Freud. O jovem interiorano começa a se adaptar à vida na capital, sua agitação urbana, o comércio, as festas e tudo mais. Neste ínterim conhece a jovem Anezka e se apaixona por ela. Mas misteriosamente ela desaparece. Depois de muitos percalços, descobre que ela é dançarina de cabaré. No estilo vaudeville, muito comum no final do século XIX e início do século XX. Eram casas de espetáculo com apresentações de dançarinas, músicos populares e eruditos, mágicos, comediantes, imitadores etc. É nesta oportunidade que Franz mantém sua primeira relação sexual. Mas Anezka some novamente, causando muita angústia em Franz.
Quando Franz vai até ao cabaré pela primeira vez, assiste a uma apresentação de um humorista que ridiculariza Hitler. Tempos depois, assiste a um comediante que faz piadas antissemitas para agradar os oficiais nazistas que estão assistindo a apresentação.
Neste período, Franz faz amizade com Freud e começa a pedir conselhos amorosos. Mas, de cara, o “Pai da Psicanálise” diz: “Ninguém sabe nada do amor; muito menos eu”. Entretanto, Franz não desiste e os bate-papos entre ambos passam a ser frequentes.
Esta história está situada na década de 1930, período em que o movimento nazista passa a influenciar fortemente a Áustria, até culminar com a anexação de seu território pela Alemanha, em 12 de março de 1938. A tabacaria de Otto passa a sofrer vários ataques, entre eles diversas pichações, dizendo que aquele estabelecimento vendia para judeus e comunistas. Uma das pichações foi escrita com sangue de animais. Provavelmente feita pelo açougueiro, que ficava na mesma calçada da tabacaria e era simpatizante no nazismo.
O filme aborda especialmente dois grandes temas: a Psicanálise e o Nazismo. No campo da Psicanálise faz referências aos estudos sobre a interpretação dos sonhos e aos estudos sobre a sexualidade.
Franz relata para Freud seus sonhos e pesadelos. Freud recomenda a Franz que mantenha papel e caneta ao lado da cama, para anotar os sonhos logo que acordar. Infelizmente, no filme, Freud não analisa os sonhos de Franz. E, quanto à sexualidade, o filme vai apresentar todos os conflitos relacionados com os tabus sexuais, as repressões e o conservadorismo tão prejudicial à vivência de uma sexualidade saudável e sem opressões.
A cena inicial do filme faz uma relação entre o gozo e a tempestade.
No que se refere ao Nazismo, o filme mostra as várias situações do cotidiano em que as ideias fascistas vão penetrando. Principalmente através do homem comum, o homem medíocre, o machista, ignorante, alienado, que convive com várias frustrações e recalques.
É importante lembrar que a Áustria sempre cultivou um ambiente antissemita. Por exemplo, os músicos judeus eram proibidos de fazerem parte da Ópera da Corte de Viena, no século XIX. Só admitiam músicos católicos. Por este motivo, o maestro judeu Gustav Mahler se converteu ao catolicismo para poder tocar em Viena.
O ator que faz o personagem de Freud é Bruno Ganz, o mesmo que ficou popular ao representar Hitler, no filme “A Queda: as últimas horas de Hitler”. Um excelente ator! Mas faleceu em fevereiro de 2019.
O filme apresenta Freud no auge de suas capacidades, mas frágil diante do Nazismo. Em 1938, depois de inúmeras agressões por parte dos nazistas, Freud decide migrar para a Inglaterra. No dia 4 de junho deixou Viena, com 82 anos de idade. No ano seguinte, em Londres, faleceu no dia 23 de setembro.
É paradoxal assistir a este filme e comentá-lo, sabendo que a qualquer momento poderemos ser perseguidos e possivelmente mortos por defendermos os direitos trabalhistas, os direitos sociais e o meio ambiente; lutarmos contra o machismo, o feminismo, o racismo, a homofobia e a transfobia.
Autor:
Francisco José Nunes
Mestre em Ciências Sociais - PUC-SP; Graduado em Filosofia; Professor na Faculdade Paulista de Comunicação - FPAC.
Serviço:
Filme: A Tabacaria (2018) - 1h57min.
Direção: Nikolaus Leytner
Plataformas: Telecine, Apple TV, Now, Google Play.
P.S.: Esta resenha foi publicada originalmente no site "Construir Resistência", no dia 13 de agosto de 2021.
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