“São Petersburgo, a cidade de gelo”
Autor: Francisco José Nunes
Análise do filme, sem spoiler!
Filme: Cidade de Gelo (2021) - 2h16min
Título em russo: Serebyanye Komki
Título em inglês: The Silver Skates
Plataforma: Netflix
Direção: Mikhail Lockshin
O filme Cidade de Gelo não é apenas um drama romântico. Ele é um mergulho na Rússia, em sua fase mais acelerada rumo à Revolução de 1917. O berço dessa revolução é a cidade de São Petersburgo.
O filme trata do romance entre Matvey (Fedor Fedotov), um jovem proletário, e Alice (Sofia Priess), uma jovem da aristocracia russa. Matvey trabalha como entregador para uma confeitaria chique de São Petersburgo, a “Le Grand Pie”. Entretanto, certo dia ao receber a tarefa de entregar uma encomenda com urgência, ele não consegue entregar dentro do prazo previsto. A consequência é que ele foi demitido e humilhado pelo proprietário da confeitaria. O motivo do problema foi a interrupção de uma das principais avenidas de São Petersburgo para a passagem da carruagem de um membro da aristocracia local.
Cabisbaixo, Matvey cruza o caminho de Alexey (Yuriy Borisov), chefe de uma gangue de batedores de carteiras. Mas essa gangue tem suas peculiaridades, por um lado o estilo Robin Hood e por outro lado a simpatia com as ideias marxistas que fervilhavam na Rússia, nas últimas décadas do Século XIX. Além de estar desempregado, Matvey também está preocupado com seu pai - Pietr - pois ele está com um estágio avançado de tuberculose e precisa de muito dinheiro para fazer um tratamento especializado. Por este motivo Matvey entra para a gangue. O pai de Matvey trabalha como acendedor de lampiões de rua, ele precisa acender 50 lampiões no início da noite e apagar os mesmos lampiões na manhã seguinte. Um trabalho miserável!
Depois de um certo tempo, Matvey mostra uma grande quantidade de dinheiro para seu pai. Mas o pai não aceita porque desconfia que a origem do dinheiro tenha sido o roubo. Ocorre uma discussão muito tensa entre pai e filho, culminando numa declaração de Matvey que coloca em dúvida a existência de Deus. Trata-se de uma referência ao pensamento niilista, que nasceu na Rússia durante o Século XIX.
(Palácio de Inverno na época do Czarismo)
Foto do autor
Durante uma das andanças noturnas da gangue pelas ruas de São Petersburgo, Matvey identifica no portão de uma mansão o mesmo brasão da carruagem que interrompeu a avenida e que foi o principal motivo para sua demissão como entregador da confeitaria. Então a gangue decide entrar no jardim da mansão e deixar sua marca no palácio. Mas ao subir em uma das sacadas do palácio, Matvey conhece Alice. Ocorre um acidente e ele vai embora rápido.
Alice é uma jovem que recebe a educação tradicional da aristocracia russa. Ela tem uma preceptora inglesa, que ministra lições de etiqueta, língua inglesa e cultural geral. O desejo de Alice é fazer faculdade de Química. Mas seu pai, Nikolai Vyazemsky (Ministro do Czar), é contra o acesso de mulheres ao ensino superior. Ela queria ser aluna do cientista Sergey Koltakov. Esse personagem representa o cientista Dmitri Mendeleev, o criador da “Tabela Periódica dos Elementos Químicos”, que era professor em São Petersburgo. Mendeleev nasceu na Sibéria e durante sua adolescência recebeu aulas de Ciências de seu cunhado Bessagrin, um simpatizante do “Movimento Dezembrista”. Este movimento defendia uma “monarquia parlamentar” e várias ideias progressistas. Mendeleev irá defender essas ideias ao longo de sua vida, inclusive o direito das mulheres ao ensino superior.
Numa determinada cena do filme Alice recebe um presente de Alexey (o líder da gangue) o volume I da obra “O Capital”, de Karl Marx. A primeira tradução desse livro, escrito em alemão, para outra língua, foi justamente para a língua russa. A primeira edição em russo foi publicada em 1872, cinco anos depois da publicação da edição original em alemão e quinze anos antes da tradução para o inglês.
Mais adiante o pai de Alice dá um flagrante no quarto dela e a encontra lendo “O Capital”. Ele diz que ela está influenciada por ideias "dezembristas" e manda queimar imediatamente todos os livros dela. É importante registrar que no período em que ocorre o filme, final de 1899 e início de 1900, Lênin exerce uma grande influência em São Petersburgo. Ele participou da criação do partido “União da Luta pela Libertação da Classe Operária”, em 1895; mas foi preso em 1897 e enviado para cumprir pena na Sibéria até 1900. Lênin fez faculdade de Direito em São Petersburgo e sempre foi um aluno brilhante.
O contexto histórico do filme é muito importante, porque trata da última fase do czarismo e da fase anterior à Revolução de 1917. O Czar Nicolau II, que exerceu o poder de 1894 até 1917, era um governante indeciso e inexperiente. Para comemorar a sua entronização, foi anunciada uma festa popular com comida, bebida e entrega de brindes para o povo. Entretanto, o precário planejamento da festa resultou numa grande tragédia, no dia 18 de maio de 1896. O grande número de pessoas que se dirigiu para o Campo de Khodynka (em Moscou) e a falta de organização adequada resultou na morte de cerca de 1.500 pessoas pisoteadas e no ferimento de cerca de 20.000 pessoas. Por este e por outros motivos, Nicolau II ganhou o apelido de “o Sanguinário”.
O filme tem um roteiro leve e ágil; tem uma boa mescla de romance, humor e fantasia. Adota inúmeras referências cinematográficas, dentre elas: “Titanic”, “Romeu e Julieta”, “Robin Hood”, com uma estética dos “Contos de fadas da Disney”. Isso pode transformar o filme num bom passatempo.
Na trilha sonora, o melhor da música clássica: Debussy, Bach, Haydn, Wagner, Strauss e Tchaikovsky. O músico russo Piotr Tchaikovski estudou em São Petersburgo, na França e na Alemanha. Quando retornou para a Rússia (1879) foi tratado como um músico “excessivamente ocidental”. Foi graças a uma campanha encabeçada pelo escritor Dostoievski, que a obra de Tchaikovsky passou a ser tratada como uma “música universal” e bem aceita na Rússia. O músico e o escritor, dois gênios que viveram em São Petersburgo neste período. Tchaikovsky morreu em 1893 e Dostoievski em 1881. Em novembro de 2021 vamos comemorar o "Bicentenário do nascimento de Dostoievski".
Vale a pena assistir o filme também pelas imagens de São Petersburgo e seus arredores. A cidade é linda o ano todo, mas no inverno tem suas peculiaridades. As locações foram feitas: no Palácio de Inverno (sede do governo czarista e atualmente o Museu Hermitage); no Palácio de Mármore (às margens do Rio Neva); na Fortaleza de Pedro e Paulo (presídio destinado aos revolucionários, dentre eles: Dostoievski, Máximo Gorki, Lyudmila Stal, Leon Trotsky, Alexander Ulyanov (irmão de Lênin); na Estação Ferroviária Vitebsky; Palácio Gatchina, Palácio Sheremetev, Palácio Yusupov (ao lado do Rio Moika, palácio onde ocorreu o assassinato de Rasputin); Museu de Artes Aplicadas de Stieglitz, dentre outros.
Sugestão:
Para contextualizar melhor o filme, assista a série: “Os últimos czares” (2019), também da Netflix.
Autor:
Francisco José Nunes
(Mestre em Ciências Sociais - PUC-SP; Graduado em Filosofia; Professor na Faculdade Paulista de Comunicação - FPAC; visitou São Petersburgo em novembro de 2017, durante as comemorações do Centenário da Revolução Russa)
P.S.: Esse artigo foi publicada originalmente no site "Construir Resistência", no dia 14/07/2021.
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