(Protágoras de Abdera - Quadro de Jusepe de Ribera - 1637)
Certidão
de Existência é um documento vital
Francisco
José Nunes
Pode parecer estranho
quando ouvimos falar pela primeira vez em “Certidão de Existência”! Afinal de
contas, o documento normal é “Certidão de Nascimento”. Mas todos sabemos na
prática, que não basta que a pessoa exista, é preciso que ela seja reconhecida.
O
reconhecimento da existência das pessoas sempre foi um grande desafio. Vamos
refletir sobre este tema partindo da frase do Sofista Protágoras de Abdera, que
viveu na Grécia entre os anos de 480 e 410 a.C. Portanto, morreu aos 70 anos de
idade.
“O homem é a medida de
todas as coisas; daquelas que são, enquanto são; e daquelas que não são,
enquanto não são”.
Com esta tese Protágoras
introduz na história da Filosofia um conceito extremamente importante e complexo,
isto é: o Relativismo. Este conceito parte da seguinte afirmação: “Tudo é
relativo”! Ora, imediatamente os filósofos perguntarão: esta afirmação é
absoluta ou relativa? Porque se a resposta for “é absoluta”, concluiremos que
esta afirmação é falsa. Porque se “tudo é relativo”, esta afirmação não pode
ser absoluta! Já que tudo é relativo. Se a resposta for: “é relativa”,
concluiremos que a tese é inválida, porque não se trata efetivamente de uma
afirmação. Portanto, pode ser que nem tudo seja relativo. O relativismo parte
de uma contradição interna. Mas o conceito é útil para “relativizar” as
imposições, autoritarismos e arbitrariedades. Também é útil na pesquisa, já a
busca pelo conhecimento estará sempre aberta novas experiências e descobertas.
No campo da Antropologia o relativismo ofereceu uma grande
contribuição ao desenvolver o que conhecemos por “Relativismo Cultural”. Isto
é, ao relativizar a “cultura eurocêntrica” como padrão de medida para as demais
culturas, desencadeou-se uma ofensiva ao “Etnocentrismo”. Isto quer dizer,
adotar uma cultura como a referência central e a partir dela medir as demais
culturas. Historicamente a “cultura europeia” foi adotada como padrão para
medir as demais culturas. Os antropólogos passaram a demonstrar que não existem
“culturas avançadas” e “culturas atrasadas”. O que existem são culturas com
histórias, hábitos e conquistas diferentes. Por exemplo, não podemos dizer que
a “cultura francesa” seja superior à “cultura Yanomami”. E muito menos dizer
que a cultura yanomami seja superior à cultura francesa.
O tema do relativismo está expresso na primeira parte da frase: “O homem
é a medida de todas as coisas”. O sentido do termo “homem” é aplicado em todas as
circunstâncias. O “homem” no gênero masculino. Principalmente porque, na Grécia
Antiga a mulher era considerada um “homem incompleto”. Mas também introduz um
conceito importantíssimo: o subjetivismo. Por
exemplo, cada pessoa, individualmente é que dá a medida para as coisas: se uma
casa é grande ou pequena, feia ou bonita, cara ou de baixo custo.
Agora podemos ir para a segunda parte da frase: “daquelas
que são enquanto são; e daquelas que não são, enquanto não são”.
É o ser humano, individualmente, que decide se algum ser
existe ou não. Em outras palavras, é uma pessoa que dá a “Certidão de
Existência” para outra pessoa.
Por exemplo, quando você chega no local de trabalho e dá bom
dia para todas as pessoas, mas pensando ter cumprimentado todas as pessoas,
esqueceu de dar bom dia para uma delas. Esta pessoa poderá se questionar: “será
que ele não me viu aqui”? Se por distração, isto ocorrer novamente com a mesma
pessoa, ela vai concluir que você está propositalmente desconhecendo a
existência dela.
Agora imaginemos quando esta situação é feita de propósito.
Isto na Grécia tinha um nome: “ostracismo”, que quer dizer: punição para uma
pessoa através do afastamento das atividades políticas, da vida social e
intelectual. Uma penalidade cruel, porque a pessoa permanecia na cidade, mas
era impedida de manter relacionamento com as demais pessoas.
Se tomarmos a sociedade
brasileira iremos observar a gravidade desse problema. Durante séculos as
pessoas negras escravizadas não foram reconhecidas com “seres humanos”. Demorou
muito tempo para que a Igreja Católica admitisse que as pessoas negras e
indígenas tinham alma. Até hoje esta batalha pela conquista da “Certidão de
Existência” permanece. O fato da população negra não ocupar espaço de
visibilidade positiva na mídia; de não terem um número expressivo de pessoas
negras em profissões de alto reconhecimento social, tais como a Medicina e o
Direito; demonstra a falta de reconhecimento das pessoas negras.
Outra situação gravíssima é o caso das pessoas deficientes.
São muito recentes as conquistas de acessibilidade universal no transporte
público, nos edifícios comerciais, educacionais, artísticos e religiosos. Até
hoje muitos locais de atendimento ao público não têm acessibilidade universal.
Inclusive em instituições que tem por missão defender os Direitos Sociais.
O mesmo é válido para as pessoas idosas. Algumas conquistas
foram importantes, como por exemplo no acesso universal e gratuito ao
transporte público e nos ingressos para atividades artísticas. Mas
infelizmente, em pleno Século XXI, a pessoa idosa foi transformada em problema:
ela é discriminada nos espaços públicos, na Publicidade, nos Meios de
Comunicação; é alvo de humilhação através do humor covarde e preconceituoso; e,
é “depositada” em instituições de longa duração para pessoas idosas. Há uma
tentativa constante de retirada da “Certidão de Existência” da pessoa idosa.
Concluindo, podemos dizer que as pessoas e a sociedade têm
um poder muito grande que é o de reconhecer ou não a existência das demais
pessoas. Muitas pessoas não tomam consciência deste poder. Refletir sobre os
desafios propostos por Protágoras de Abdera é muito importante!
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