quinta-feira, 27 de junho de 2019

Certidão de Existência é um documento vital


(Protágoras de Abdera - Quadro de Jusepe de Ribera - 1637)


Certidão de Existência é um documento vital

Francisco José Nunes


         Pode parecer estranho quando ouvimos falar pela primeira vez em “Certidão de Existência”! Afinal de contas, o documento normal é “Certidão de Nascimento”. Mas todos sabemos na prática, que não basta que a pessoa exista, é preciso que ela seja reconhecida.


O reconhecimento da existência das pessoas sempre foi um grande desafio. Vamos refletir sobre este tema partindo da frase do Sofista Protágoras de Abdera, que viveu na Grécia entre os anos de 480 e 410 a.C. Portanto, morreu aos 70 anos de idade.

         “O homem é a medida de todas as coisas; daquelas que são, enquanto são; e daquelas que não são, enquanto não são”.

      Com esta tese Protágoras introduz na história da Filosofia um conceito extremamente importante e complexo, isto é: o Relativismo. Este conceito parte da seguinte afirmação: “Tudo é relativo”! Ora, imediatamente os filósofos perguntarão: esta afirmação é absoluta ou relativa? Porque se a resposta for “é absoluta”, concluiremos que esta afirmação é falsa. Porque se “tudo é relativo”, esta afirmação não pode ser absoluta! Já que tudo é relativo. Se a resposta for: “é relativa”, concluiremos que a tese é inválida, porque não se trata efetivamente de uma afirmação. Portanto, pode ser que nem tudo seja relativo. O relativismo parte de uma contradição interna. Mas o conceito é útil para “relativizar” as imposições, autoritarismos e arbitrariedades. Também é útil na pesquisa, já a busca pelo conhecimento estará sempre aberta novas experiências e descobertas.

         No campo da Antropologia o relativismo ofereceu uma grande contribuição ao desenvolver o que conhecemos por “Relativismo Cultural”. Isto é, ao relativizar a “cultura eurocêntrica” como padrão de medida para as demais culturas, desencadeou-se uma ofensiva ao “Etnocentrismo”. Isto quer dizer, adotar uma cultura como a referência central e a partir dela medir as demais culturas. Historicamente a “cultura europeia” foi adotada como padrão para medir as demais culturas. Os antropólogos passaram a demonstrar que não existem “culturas avançadas” e “culturas atrasadas”. O que existem são culturas com histórias, hábitos e conquistas diferentes. Por exemplo, não podemos dizer que a “cultura francesa” seja superior à “cultura Yanomami”. E muito menos dizer que a cultura yanomami seja superior à cultura francesa.

O tema do relativismo está expresso na primeira parte da frase: “O homem é a medida de todas as coisas”. O sentido do termo “homem” é aplicado em todas as circunstâncias. O “homem” no gênero masculino. Principalmente porque, na Grécia Antiga a mulher era considerada um “homem incompleto”. Mas também introduz um conceito importantíssimo: o subjetivismo. Por exemplo, cada pessoa, individualmente é que dá a medida para as coisas: se uma casa é grande ou pequena, feia ou bonita, cara ou de baixo custo.

         Agora podemos ir para a segunda parte da frase: “daquelas que são enquanto são; e daquelas que não são, enquanto não são”.

         É o ser humano, individualmente, que decide se algum ser existe ou não. Em outras palavras, é uma pessoa que dá a “Certidão de Existência” para outra pessoa.

         Por exemplo, quando você chega no local de trabalho e dá bom dia para todas as pessoas, mas pensando ter cumprimentado todas as pessoas, esqueceu de dar bom dia para uma delas. Esta pessoa poderá se questionar: “será que ele não me viu aqui”? Se por distração, isto ocorrer novamente com a mesma pessoa, ela vai concluir que você está propositalmente desconhecendo a existência dela.

         Agora imaginemos quando esta situação é feita de propósito. Isto na Grécia tinha um nome: “ostracismo”, que quer dizer: punição para uma pessoa através do afastamento das atividades políticas, da vida social e intelectual. Uma penalidade cruel, porque a pessoa permanecia na cidade, mas era impedida de manter relacionamento com as demais pessoas.

       Se tomarmos a sociedade brasileira iremos observar a gravidade desse problema. Durante séculos as pessoas negras escravizadas não foram reconhecidas com “seres humanos”. Demorou muito tempo para que a Igreja Católica admitisse que as pessoas negras e indígenas tinham alma. Até hoje esta batalha pela conquista da “Certidão de Existência” permanece. O fato da população negra não ocupar espaço de visibilidade positiva na mídia; de não terem um número expressivo de pessoas negras em profissões de alto reconhecimento social, tais como a Medicina e o Direito; demonstra a falta de reconhecimento das pessoas negras.

         Outra situação gravíssima é o caso das pessoas deficientes. São muito recentes as conquistas de acessibilidade universal no transporte público, nos edifícios comerciais, educacionais, artísticos e religiosos. Até hoje muitos locais de atendimento ao público não têm acessibilidade universal. Inclusive em instituições que tem por missão defender os Direitos Sociais.

         O mesmo é válido para as pessoas idosas. Algumas conquistas foram importantes, como por exemplo no acesso universal e gratuito ao transporte público e nos ingressos para atividades artísticas. Mas infelizmente, em pleno Século XXI, a pessoa idosa foi transformada em problema: ela é discriminada nos espaços públicos, na Publicidade, nos Meios de Comunicação; é alvo de humilhação através do humor covarde e preconceituoso; e, é “depositada” em instituições de longa duração para pessoas idosas. Há uma tentativa constante de retirada da “Certidão de Existência” da pessoa idosa.

         Concluindo, podemos dizer que as pessoas e a sociedade têm um poder muito grande que é o de reconhecer ou não a existência das demais pessoas. Muitas pessoas não tomam consciência deste poder. Refletir sobre os desafios propostos por Protágoras de Abdera é muito importante!


Nenhum comentário:

Postar um comentário