Utopia e distopia na minissérie Years and Years
Análise sem spoiler!
A minissérie Years and
Years (BBC/HBO - 2019), criada por Russell T. Davies causou muito impacto
porque, segundo muitos comentários, pegou pesado com o uso da distopia.
Os seis episódios da
minissérie acompanham a vida da família Lyon por 15 anos. Tudo começa em uma
noite crucial, em 2019. Os principais membros da família são: Muriel Deacon
(Anne Reid) é a matriarca da família, uma avó devotada, faz críticas
perspicazes sobre o cotidiano; Stephen Lyons (Rory Kinnear) é o filho mais
velho, mora numa linda casa em Barnsbury (Londres), é casado com Celeste, pai
de duas garotas (Bethany e Ruby), tem uma ótima condição financeira, é calmo,
sorridente e comporta-se como o pacificador; Celeste Bisme-Lyons (T’Nia Miller)
é casada com Stephen, é contabilista, moderna, inteligente, estilosa, mãe de
Bethany e de Ruby.
Também fazem parte da
família Lyons: Daniel Lyons (Russell Tovey) o terceiro filho, trabalha no
Departamento de Habitação da Prefeitura de Manchester, é casado com Ralph
(Dino Fetscher) que é professor do ensino fundamental; Rosie Lyons (Ruth
Madeley) é a mais jovem das Lyons, é cadeirante, nasceu com espinha bífida
(defeito congênito na medula espinhal), mãe solteira de Lee e Lincoln, de dois
pais diferentes, trabalha como chef de cozinha numa escola local, é muito
divertida; Edith Lyons (Jessica Hynes) é a segunda filha, é ativista e
internacionalista da causa ambiental, viajou bastante pelo mundo; Bethany
Bisme-Lyons (Lydia West) é a filha mais velha de Stephen e Celeste, é uma aluna
brilhante, tímida, obcecada por transumanismo, implantou um telefone na mão e
pretende fazer upload da sua consciência para a nuvem.
A personagem que não
pertence à família Lyons, mas que influencia muito a vida familiar e a
sociedade britânica é Vivienne Rook (Emma Thompson). Ela é uma empresária que
entra nas disputas políticas como uma representante da extrema-direita. Faz
declarações absurdas, mas que com o tempo vão sendo normalizadas. Através de
várias eleições vai galgando o poder até se transformar numa governante
poderosa e fascista.
Para refletir sobre as
questões colocadas pela série é inevitável mencionar o governo da
Primeira-Ministra Margaret Thatcher e a sua herança maldita. Ela exerceu o
poder no Reino Unido entre 1979 e 1990. Combateu o chamado “Estado de Bem Estar
Social”, política econômica de Estado, implantada no pós-guerra, que buscava
garantir o acesso às necessidades básicas para todas as pessoas. Por outro
lado, ela impôs a política econômica do Liberalismo, reduzindo a ação do Estado
nas áreas estratégicas da sociedade (saúde, educação, energia, transporte,
abastecimento, moradia). Introduzindo as famosas privatizações. A sua filosofia
política está bem resumida nesta declaração: “Não existe isso que chamam de
sociedade. Existem indivíduos, homens e mulheres, e existem famílias. E o
Governo só pode agir através das pessoas, mas são as pessoas que devem zelar
por seu próprio interesse. Todos devemos cuidar de nós mesmos, e depois,
também, de nossos vizinhos”. Esta declaração, infelizmente, soou como música
para muitos ouvidos. Ela estimula absurdamente o individualismo. Na prática,
Thatcher atacou os sindicatos, os partidos políticos e todas as formas de
organização social. Isolar as pessoas é a melhor forma para dominá-las.
Ao assumir o poder,
Thatcher pegou o Reino Unido com uma inflação de 25% e uma taxa de desemprego
de 17%. Mas tirou proveito desta situação para implantar as malfadadas
“políticas de austeridade”. Na condição de principal representante do
conservadorismo, suas bandeiras eram “a família e a segurança”. Sua grande
batalha inicial foi contra os sindicatos, principalmente o sindicato dos
mineiros. Que ela venceu na base da pressão econômica e da repressão policial.
Simultaneamente ela desqualificou os partidos políticos, principalmente o
Partido Trabalhista.
No plano social,
Thatcher: interrompeu o programa de moradias populares, isso prejudicou muito a
juventude, porque os jovens ficaram sem opções para sair da casa de seus pais;
fez inúmeras terceirizações no sistema de saúde NHS (o SUS britânico); apoiou a
famigerada lei conhecida por “Seção 28”, que proibia as escolas de “promover o
ensino da aceitabilidade da homossexualidade”, essa lei vigorou entre 1988 e
2003; dentre outras malvadezas.
Após 11 anos no poder o
saldo foi o seguinte: para uma líder política que “defendia a família e a
segurança”, a taxa de divórcio aumentou 11%; o número de roubos aumentou 53% e
de crimes em geral aumentou 34%; o número de famílias monoparentais aumentou
acentuadamente. Provavelmente, a causa dessa hecatombe social encontra-se na
política econômica adotada: que provocou desindustrialização; redução dos
direitos trabalhistas e sociais; e, aumentou o abismo entre os mais ricos e os
mais pobres.
Este breve panorama do
Governo Thatcher facilita a compreensão dos dilemas colocados pela série Years
and Years. Não se trata de dizer que Vivienne Rook seja uma sósia de Margaret
Thatcher, Vivi “herdou” o estado de terra arrasada deixado pelas políticas de
Thatcher. Os políticos de direita, depois que fracassam, abrem caminho para o
fascismo. Logo no primeiro episódio Vivienne diz: “Eu não entendo mais o mundo.
Antes esquerda era esquerda, direita era direita, os EUA eram os EUA”. Essa
tática dos políticos de extrema direita é típica. Criar confusão no sentido das
definições. Mas, infelizmente, essa declaração tem grande aceitação
popular.
Considerando que a maioria das pessoas se recusa a assumir as
responsabilidades necessárias para viver em sociedade. Isto é, para viver em
sociedade é preciso: dedicação ao estudo dos problemas e das soluções
propostas; participação nos debates e nas decisões; enfrentamento dos conflitos
e da pressão dos mais poderosos. Infelizmente, a maioria das pessoas prefere
ficar omissas, “neutras”, não querem “polarizar”. Resultado: a sociedade
afunda, entra em decadência.
A série Years and Years
coloca um turbilhão de problemas para serem enfrentados: a devastação
ambiental, o abismo entre ricos e pobres, a precarização das condições de
trabalho, as crises econômicas, o negacionismo, o terraplanismo, a causa dos
refugiados e imigrantes, a homofobia, a xenofobia, entre outras. Neste sentido,
a série apresenta um mundo distópico. Entretanto, a própria série indaga: “Pode
uma família comum mudar o mundo?”. É na tentativa de dar a resposta que a série
termina. Isto é, buscando refazer a boa e velha utopia política, na luta por um
mundo melhor.
A disputa entre utopia e
distopia foi muito acirrada no Século XX e continua agora no Século XXI. O
termo utopia compreendido aqui enquanto desejo de uma sociedade ideal,
perfeita. Neste caso, é inevitável citar o texto do cineasta argentino Fernando
Birri: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta
dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu
caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que
eu não deixe de caminhar”.
A distopia, por sua vez,
significa “um país infeliz”, “um lugar doente, ruim, desfavorável”. Daí
entendermos o sucesso atual das séries, filmes e livros distópicos. Depois da
eleição do Trump a venda de livros sobre distopia aumentou muito. Porque as
pessoas queriam entender o que estava acontecendo. Diante da falência da
“democracia burguesa”, com todos os seus problemas, temos pela frente uma
grande avenida para caminharmos rumo à construção de uma sociedade fraterna,
solidária, participativa, equânime, ecológica e “perfeita”.
Autor:
Francisco José Nunes
Mestre em Ciências Sociais - PUC-SP; Graduado em Filosofia; Professor na
Faculdade Paulista de Comunicação - FPAC.
Para saber mais sobre o Governo Thatcher:
Artigo: “Não, Thatcher não salvou a economia”, Andrew Kersley
https://jacobin.com.br/2021/01/nao-thatcher-nao-salvou-a-economia/
P.S.: Este artigo foi publicado originalmente no site “Construir
Resistência”, no dia 23/07/2021.
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