sábado, 16 de novembro de 2019

Podcast: Reflexões sobre as lutas antirracistas

Joselicio Junior - Juninho, no lançamento do livro:
"Reflexões de Resistência", ao lado do Prof. Dennis de Oliveira

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Clicar em: "Áudio sem perda de maçã"

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Artigo: A morte e o Projeto de Vida

Obra: "Pelo amor de Deus" (Artista: Damien Hirst)

A morte e o Projeto de Vida

      Já dizia o filósofo Montaigne: “Quem ensinasse os seres humanos a morrer, os ensinaria a viver”.
         Refletir sobre a morte tornou-se um tabu em nossa sociedade contemporânea. Por inúmeros motivos, a morte foi banalizada, ela tornou-se um evento genérico, distante e virtual. Evita-se, constantemente, refletir sobre a morte.
       Pensar sobre a morte implica em pensar sobre o Projeto de Vida pessoal e coletivo. O estilo de vida individualista, massificado e avaliado pela produção e acumulação de bens, provoca uma alienação na existência humana. Porque a vida fica sem sentido e torna-se uma vida absurda.
         Nesta perspectiva, dizia o filósofo Sartre: “Quanto mais absurda a vida, menos suportável é a morte”. Para fugir do seu destino, isto é, que o ser humano é “um ser para a morte”, mergulha-se nas longas jornadas de trabalho, no consumismo, no hedonismo e em todo tipo de subterfúgio que busque o afastamento da reflexão sobre a vida. A vida em comunidade, a vida planetária, o destino do ser humano e de todos os seres existentes.
         Neste contexto, as pessoas idosas, as pessoas doentes e as pessoas mais pobres são as mais penalizadas. Porque são tratadas como um peso para a sociedade, são desumanizadas, apartadas e condenadas à morte de maneira cruel.
         Pensar sobre a morte implica em pensar sobre os valores humanos, a ética, os afetos e nos aspectos sublimes da existência. Expressos na espiritualidade, ligada ou independente da religiosidade; na produção estética; nas festas populares autênticas; e nas diversas expressões do espírito humano.
         Refletir sobre a morte nos coloca numa reverência ao legado dos nossos antepassados e exige de nós um compromisso com as gerações futuras.

Bibliografia
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1993.
MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

sábado, 19 de outubro de 2019

sábado, 5 de outubro de 2019

Podcast: Coringa, um alerta

Coringa (Joaquin Phoenix)

O programa analisa o filme "Coringa", destacando os problemas causados ​​pelo abismo crescente entre ricos e pobres; faz uma abordagem sobre as diversas formas de loucura; e, especula sobre as conseqüências sociais imprevisíveis em decorrência do fim das aposentadorias solidárias, do corte nos direitos trabalhistas e dos cortes nos investimentos nas áreas sociais.

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domingo, 7 de julho de 2019

Cinquentenário do livro “Diário da guerra do porco”

Adolfo Bioy Casares (1914-1999)



Cinquentenário do livro “Diário da Guerra do Porco”

Autor do artigo: Francisco José Nunes

               Em 1969 o escritor argentino Adolfo Bioy Casares publicou o livro “Diário da guerra do porco”. Após 50 anos de sua publicação, a obra ficou mais relevante, seja por suas qualidades literárias, seja pelo seu tema de triste atualidade.

         O “Diário” registra um período da história de Buenos Aires em que um movimento de jovens persegue, espanca e mata pessoas idosas; por considerarem que elas são improdutivas, inúteis, ridículas e um peso econômico para a sociedade.

         Casares tinha 55 anos quando publicou este livro e parece manifestar preocupação com o seu próprio envelhecimento. O personagem principal é Isidoro Vidal, uma pessoa que vive os conflitos da transição entre a fase adulta e a velhice. Nos diálogos entre os amigos de Vidal aparecem os sinais da velhice: surdez, dificuldade para dormir, uso de dentadura, incontinência urinária e impotência sexual.

         O grupo de amigos de Isidoro Vidal é formado por: Jimi, Néstor, Dante, Arévalo e Rey. Isidoro Vidal é conhecido no bairro por “don Isidro”. Vidal é inquilino em um populoso cortiço (conventillo) no tradicional bairro Recoleta, na Rua Paunero, perto do Parque Las Heras. Ele vive com o filho Isidorito, um jovem que trabalha como vigia noturno de uma escola. Isidoro Vidal foi abandonado pela esposa quando Isidorito era criança.


         O primeiro capítulo do livro já apresenta um panorama da história. Vidal está com dor de dente e conversa com o seu vizinho Bogliolo, que logo indica um dentista. Naquele mesmo dia, à tarde, Vidal vai ao dentista. Após examinar, “o dentista lhe explicou que a partir de uma certa idade as gengivas, como se fossem de barro, amolecem por dentro, e que felizmente agora a ciência dispunha de um remédio prático: a extirpação de toda a dentadura e a sua substituição por outra mais apropriada”.

Depois de passar por essa “carnificina”, Vidal retorna para casa. No dia seguinte amanhece “com indisposição e febre”. Ficou na cama o dia todo. Mas no outro dia, “na quarta-feira, dia 25 de junho, resolveu pôr fim àquela situação. Iria ao café, para jogar a habitual partida de truco. Pensou que à noite seria o melhor momento para encontrar os amigos”. Logo que entra no café seu amigo Jimi comenta com ironia: “Que belo aparelho de jantar”. Néstor também passou pelo mesmo sofrimento.

         O grupo de amigos se tratava como “os rapazes” (“los muchachos”). “A palavra ‘rapazes’, empregada por eles, não supõe um desejo estranho e inconsciente de se passar por jovens, como afirma Isidorito, o filho de Vidal, mas obedece à casualidade de uma vez já o terem sido e que por isso, justamente, se tratavam desse modo”.

Os debates sobre os sinais do envelhecimento são constantes ao longo do “Diário”. Nesta noite do dia 25 de junho, em pleno inverno, depois de tomar Fernet (bebida muito popular na Argentina, composta por diversos tipos de ervas maceradas no álcool), comer queijo e amendoim, jogar diversas partidas de truco (Vidal perdeu todas), o grupo decide ir embora para suas casas. Mas enquanto se preparavam para sair, o jornaleiro “don Manuel” entrou no café, foi até o balcão, bebeu um copo de vinho tinto e logo foi embora.


         Na caminhada pelas ruas “los muchachos” enfrentavam um frio intenso, mas trocavam frases espirituosas e faziam provocações entre si. Enquanto se divertiam, o grupo de amigos foi surpreendido por uma gritaria. A princípio pensaram que estavam matando um cachorro, um gato ou um rato. Ao avançarem mais alguns metros observaram um grupo de jovens, armados de paus e ferros, que espancavam uma pessoa. Era o jornaleiro “don Manuel”. “Vidal viu que o pobre velho estava de joelhos, o tronco inclinado para a frente, a cabeça destroçada, protegida com as mãos ensanguentadas”. Não havia mais tempo para salvar “don Manuel”, ele já estava morto.

Afastando-se um pouco, Vidal descobriu um casal que observava tudo e manifestava com um olhar de desaprovação aquela matança. “O rapaz, de óculos, levava livros debaixo do braço; ela parecia uma garota decente. Buscando um apoio no casal de jovens, Vidal comentou: ‘Que lição’! A jovem disse: ‘Sou contrária a qualquer violência’. Tentando conquistar a solidariedade deles, Vidal disse: “Nós não podemos fazer nada, mas a polícia, para que serve”? Mas o rapaz advertiu Vidal: “Vovô, não é hora de andar discutindo. Por que não vai embora antes que lhe aconteça alguma coisa”?

         Vidal foi para casa, mas não conseguiu dormir naquela noite. Ao longo do “Diário da guerra do porco” vamos observar que o filho de Vidal, o Isidorito e o filho de Néstor aderem ao movimento de jovens que matam pessoas idosas. O nome do movimento é “Jovens Turcos” e o seu mentor ideológico é Arturo Farrell, um líder que insufla o movimento através de seu programa diário em uma emissora de rádio. Aqui entramos no contexto histórico da obra. Este livro foi publicado em 1969, mas suas referências remontam à década de 1940. O nome “Arturo Farrell” é uma composição de dois protagonistas da política na Argentina.

O General Arturo Rawson, que deu um Golpe de Estado no dia 4 de junho de 1943, mas foi derrubado no dia 7 de junho do mesmo ano, pelo “Grupo de Oficiais Unidos” (GOU), que colocou no poder o General Pedro Pablo Ramirez Machuca. Este ficou na Presidência da República de 7 de junho de 1943 até 25 de fevereiro de 1944; e, foi sucedido pelo General Edelmiro Julián Farrell, Presidente da Argentina de 25 de fevereiro de 1944 até 4 de junho de 1946. A partir de 1946 começa a “Era Perón”. Acrescente-se que o General Arturo Rawson, na década de 1920, participou das campanhas militares que massacraram os indígenas da região do Chaco, como Oficial de Cavalaria.

     O Movimento “Jovens Turcos”, originalmente, era formado por militares da Turquia, que chegaram ao poder em 1908 e tinham entre seus principais objetivos: a modernização e ocidentalização da Turquia. Muitos desses oficiais estudaram na Alemanha e eram muito interessados pela Revolução Francesa, Rousseau, Montesquieu e Victor Hugo. Mas foi este movimento o responsável pelo “Holocausto Armênio”. O dia 24 de abril de 1915 é considerado o dia do início do genocídio do povo armênio na Turquia. Neste dia foi decretada a prisão de 250 intelectuais, líderes religiosos e políticos. Alguns foram enviados para o exílio, mas a maioria deles foi assassinada. Até o ano de 1923 calcula-se que tenham sido assassinados cerca de 1,5 milhão de armênios, mortos de fome, fuzilados, queimados, decapitados.
       
O “Diário da guerra do porco” narra também a morte de Néstor, que foi ao Estádio de Futebol, levado por seu filho e foi morto durante um tumulto provocado pela torcida jovem. Durante o velório os amigos (“los muchachos”) conversam sobre os problemas que estão enfrentando, principalmente o fato de o Governo atrasar o pagamento das aposentadorias. Um dos jovens presentes entra na conversa e diz: “Um dia desses ouvi falar de um plano compensatório: o oferecimento de terras no Sul a pessoas idosas”.

Irritado, Dante comenta: “Digam simples e claramente que vão deportar os velhos em massa”! Ao que Rey complementa: “Como bucha de canhão”. E Arévalo conclui: “Para tamponar possíveis infiltrações de nossos irmãos chilenos”. Será que o Governo pretendia enviar as pessoas idosas para a Região da Patagônia, no Sul da Argentina? Onde parte do território é formado por deserto e a outra parte por geleiras.

         Em meio a este ambiente de violência o “Diário” também relata as relações amorosas e a sexualidade das pessoas idosas. Marcado pelo conservadorismo, machismo e a tradicional falta de educação sexual. No caso do personagem principal, don Isidro, ocorrerá um relacionamento caracterizado por aproximações e distanciamentos com Nélida, uma jovem que tenta se aproximar dele, mas ele acha que este amor seria impossível. Sobre o relacionamento com mulheres mais jovens don Isidro sentencia: “Tem que dizer a si mesmo que elas não são para você. Quando olha demais para elas, vira um velho repugnante”.

         Este artigo pretende refletir sobre o tema principal do livro: “a guerra contra as pessoas idosas” e ao mesmo tempo recomendar a leitura do livro. O escritor Adolfo Bioy Casares ficou famoso com a publicação do ótimo livro: “A Invenção de Morel”, publicado em 1940, que Jorge Luis Borges classificou como um “livro perfeito”.

         O grande escritor Casares ao escrever o “Diário da guerra do porco” usa uma série de recursos literários: o personagem-narrador do diário, às vezes se identifica, outras vezes busca um distanciamento dos fatos; em vários momentos da narrativa do “Diário” faz-se referência à sonhos de Vidal, de tal maneira que certos acontecimento se confundem com sonhos, mas a história em geral é marcada pelo pesadelo; as descrições das formas de violência, a física (agressões, espancamentos e assassinatos) e a simbólica (ofensas verbais contra as pessoas idosas e a exaltação da juventude).

          Um aspecto curioso, mas não menos importante, se refere ao título do livro. Em espanhol o título é: “Diário de la guerra del cerdo”. “Cerdo”, além de porco também pode ser traduzido por “capado”. Isto é, o porco é capado para engordar mais e dar mais lucro na hora da venda. Capar é extrair o órgão de reprodução do animal. Conclusão, trata-se de um diário da guerra contra as pessoas castradas sexual, econômica e socialmente.

         O “Diário” expõe o cinismo da juventude, especialmente quando a jovem estudante diz que “é contra a violência”, mas é omissa socialmente; e, as dificuldades das pessoas idosas para se organizarem e lutarem por sua defesa. O autor descreve muito bem um dos principais dilemas, que é a dificuldade para identificar “os inimigos mortais das pessoas idosas”.

Livro: “Diário da guerra do porco”
Autor: Adofo Bioy Casares
Editora: Biblioteca Azul
Coleção: Obras completas de Adolfo Bioy Casares – Volume B
Ano: 2019

terça-feira, 2 de julho de 2019

A culpa deve ser do sol

Albert Camus (1913-1960)


A culpa deve ser do sol

Texto de: Francisco José Nunes

       O escritor Albert Camus inicia o seu romance “O Estrangeiro”, com um dos parágrafos mais célebres da Literatura Universal:

         “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem”.

         O personagem principal do livro é Meursault. Ele é funcionário de um escritório em Argel, capital da Argélia, norte do continente africano. Pouco sabemos de sua vida e de sua família.

         O segundo parágrafo do livro informa que sua mãe estava internada num “asilo para velhos” em Marengo, a oitenta quilômetros de Argel. Ele pede licença ao seu patrão para ir ao velório e ao enterro, providencia a roupa de luto e parte em viagem de ônibus.

         Após o enterro volta para sua rotina. No trabalho, na relação com os vizinhos, com a namorada. Em certo momento a namorada pergunta se ele a ama. Ele dá uma resposta evasiva, parecida com um “não”. Ela fica triste, mas depois ele dá um beijo nela e tudo segue normal. Mais adiante, Meursault envolve-se num conflito com um árabe e depois de perseguições e brigas, Meurseult encontra o árabe na praia, é ameaçado com uma faca, então saca de um revolver e atira no árabe.

           Meursault é o personagem-narrador, ele encontra o árabe tomando sol na praia e descreve a cena em um parágrafo:


         “Pensei que bastava dar meia-volta e tudo estaria acabado. Mas atrás de mim comprimia-se toda uma praia vibrante de sol. Dei alguns passos em direção à nascente. O árabe não se mexeu. Apesar disso, estava ainda bastante longe. Parecia sorrir, talvez por causa das sombras sobre o seu rosto. O queimar do sol ganhava-me as faces e senti gotas de suor se acumularem nas minhas sobrancelhas. Era o mesmo sol do dia em que enterrara mamãe e, como então, doía-me sobretudo a testa, e todas as suas veias batiam juntas debaixo da pele. Por causa deste queimar, que já não conseguia suportar, fiz um movimento para a frente. Sabia que era estupidez, que não me livraria do sol se desse um passo. Mas dei um passo, um só passo à frente. E desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a faca, que ele me exibiu ao sol. A luz brilhou no aço e era como se uma longa lâmina fulgurante me atingisse na testa. No mesmo momento, o suor acumulado nas sobrancelhas correu de repente pelas pálpebras, recobrindo-as com um véu morno e espesso. Meus olhos ficaram cegos por trás desta cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas os címbalos do sol na testa e, de modo difuso, a lâmina brilhante da faca sempre diante de mim. Esta espada incandescente corroía as pestanas e penetrava meus olhos doloridos. Foi então que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e ardente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando chover fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revolver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então atirei quatro vezes ainda num corpo inerte em que as balas se enterravam sem que desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça”.

         No Tribunal do Júri, indagado sobre o motivo para ter atirado no árabe, Meursault coloca a culpa no sol.

         A essa altura do livro, a maioria dos leitores chega à seguinte conclusão: “que absurdo”! Como pode existir uma pessoa tão insensível, tão indiferente, tão vazia? Que sensação estranha!

         É justamente esta sensação incômoda que Albert Camus pretende provocar em seus leitores. Uma sensação de estranhamento. Não só o árabe é tratado como estrangeiro, mas o ser humano é um estranho no mundo.

         Durante o julgamento, a principal acusação foi que Meursault não manifestou sentimentos durante o velório e o enterro de sua mãe. A ponto do advogado de defesa indagar se aquele julgamento se referia ao enterro da mãe ou a um assassinato?

         O escritor Albert Camus, além de romancista, era dramaturgo e filósofo. Ele elaborou uma filosofia conhecida por “Absurdismo”, isto é, visão de mundo em que considera a existência um absurdo, contraditória, difícil de ser compreendida e desprovida de sentido. Através de seu personagem, Camus leva ao extremo esta situação, para provocar o seu leitor.

         O personagem Meursault coloca em evidência as fraquezas, as contradições, o vazio produzido pela chamada “sociedade ocidental cristã”. Em que os valores mínimos de respeito pela vida sequer são preservados e a extinção da solidariedade humana provoca uma devastação na sociedade. Hoje, mais de 70 anos após sua publicação, o livro “O Estrangeiro” continua a nos desafiar!

           Albert Camus nasceu na Argélia, país que era colônia da França. Seu pai morreu nos campos de batalha, durante a 1ª Guerra Mundial, quando Camus tinha apenas um ano de idade. Durante a ocupação nazista na França, Camus lutou na resistência antinazista. A publicação do livro “O Estrangeiro”, em 1942, reflete os dilemas humanos mais dilacerantes. Em 1957 ele ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Em 1960 ele morreu, vítima de um acidente de automóvel, aos 47 anos de idade.

         Recentemente o cantor, compositor, dramaturgo e escritor Chico Buarque, lançou uma música em homenagem a Camus, adaptando sua obra ao calor do sol brasileiro. A música chama-se “As Caravanas”.

         O sol tem múltiplos sentidos. Seja porque sempre se disse que a razão ilumina a vida humana; mas também se disse que não é possível filosofar nos Trópicos, porque o calor atrapalha a reflexão.

         Infelizmente, nem na Europa, nem nos Trópicos a razão foi suficiente para impedir o fascismo, o holocausto, os massacres e os genocídios.


         Abaixo, a parte principal da música “As Caravanas”, de Chico Buarque:

         Sol
         A culpa deve ser do sol
         Que bate na moleira
         O sol que estoura as veias

         O suor que embaça os olhos e a razão
         E essa zoeira dentro da prisão
         Crioulos empilhados no porão
         De caravelas no alto mar

         Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
         Filha do medo, a raiva é mãe da covardia

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Certidão de Existência é um documento vital


(Protágoras de Abdera - Quadro de Jusepe de Ribera - 1637)


Certidão de Existência é um documento vital

Francisco José Nunes


         Pode parecer estranho quando ouvimos falar pela primeira vez em “Certidão de Existência”! Afinal de contas, o documento normal é “Certidão de Nascimento”. Mas todos sabemos na prática, que não basta que a pessoa exista, é preciso que ela seja reconhecida.


O reconhecimento da existência das pessoas sempre foi um grande desafio. Vamos refletir sobre este tema partindo da frase do Sofista Protágoras de Abdera, que viveu na Grécia entre os anos de 480 e 410 a.C. Portanto, morreu aos 70 anos de idade.

         “O homem é a medida de todas as coisas; daquelas que são, enquanto são; e daquelas que não são, enquanto não são”.

      Com esta tese Protágoras introduz na história da Filosofia um conceito extremamente importante e complexo, isto é: o Relativismo. Este conceito parte da seguinte afirmação: “Tudo é relativo”! Ora, imediatamente os filósofos perguntarão: esta afirmação é absoluta ou relativa? Porque se a resposta for “é absoluta”, concluiremos que esta afirmação é falsa. Porque se “tudo é relativo”, esta afirmação não pode ser absoluta! Já que tudo é relativo. Se a resposta for: “é relativa”, concluiremos que a tese é inválida, porque não se trata efetivamente de uma afirmação. Portanto, pode ser que nem tudo seja relativo. O relativismo parte de uma contradição interna. Mas o conceito é útil para “relativizar” as imposições, autoritarismos e arbitrariedades. Também é útil na pesquisa, já a busca pelo conhecimento estará sempre aberta novas experiências e descobertas.

         No campo da Antropologia o relativismo ofereceu uma grande contribuição ao desenvolver o que conhecemos por “Relativismo Cultural”. Isto é, ao relativizar a “cultura eurocêntrica” como padrão de medida para as demais culturas, desencadeou-se uma ofensiva ao “Etnocentrismo”. Isto quer dizer, adotar uma cultura como a referência central e a partir dela medir as demais culturas. Historicamente a “cultura europeia” foi adotada como padrão para medir as demais culturas. Os antropólogos passaram a demonstrar que não existem “culturas avançadas” e “culturas atrasadas”. O que existem são culturas com histórias, hábitos e conquistas diferentes. Por exemplo, não podemos dizer que a “cultura francesa” seja superior à “cultura Yanomami”. E muito menos dizer que a cultura yanomami seja superior à cultura francesa.

O tema do relativismo está expresso na primeira parte da frase: “O homem é a medida de todas as coisas”. O sentido do termo “homem” é aplicado em todas as circunstâncias. O “homem” no gênero masculino. Principalmente porque, na Grécia Antiga a mulher era considerada um “homem incompleto”. Mas também introduz um conceito importantíssimo: o subjetivismo. Por exemplo, cada pessoa, individualmente é que dá a medida para as coisas: se uma casa é grande ou pequena, feia ou bonita, cara ou de baixo custo.

         Agora podemos ir para a segunda parte da frase: “daquelas que são enquanto são; e daquelas que não são, enquanto não são”.

         É o ser humano, individualmente, que decide se algum ser existe ou não. Em outras palavras, é uma pessoa que dá a “Certidão de Existência” para outra pessoa.

         Por exemplo, quando você chega no local de trabalho e dá bom dia para todas as pessoas, mas pensando ter cumprimentado todas as pessoas, esqueceu de dar bom dia para uma delas. Esta pessoa poderá se questionar: “será que ele não me viu aqui”? Se por distração, isto ocorrer novamente com a mesma pessoa, ela vai concluir que você está propositalmente desconhecendo a existência dela.

         Agora imaginemos quando esta situação é feita de propósito. Isto na Grécia tinha um nome: “ostracismo”, que quer dizer: punição para uma pessoa através do afastamento das atividades políticas, da vida social e intelectual. Uma penalidade cruel, porque a pessoa permanecia na cidade, mas era impedida de manter relacionamento com as demais pessoas.

       Se tomarmos a sociedade brasileira iremos observar a gravidade desse problema. Durante séculos as pessoas negras escravizadas não foram reconhecidas com “seres humanos”. Demorou muito tempo para que a Igreja Católica admitisse que as pessoas negras e indígenas tinham alma. Até hoje esta batalha pela conquista da “Certidão de Existência” permanece. O fato da população negra não ocupar espaço de visibilidade positiva na mídia; de não terem um número expressivo de pessoas negras em profissões de alto reconhecimento social, tais como a Medicina e o Direito; demonstra a falta de reconhecimento das pessoas negras.

         Outra situação gravíssima é o caso das pessoas deficientes. São muito recentes as conquistas de acessibilidade universal no transporte público, nos edifícios comerciais, educacionais, artísticos e religiosos. Até hoje muitos locais de atendimento ao público não têm acessibilidade universal. Inclusive em instituições que tem por missão defender os Direitos Sociais.

         O mesmo é válido para as pessoas idosas. Algumas conquistas foram importantes, como por exemplo no acesso universal e gratuito ao transporte público e nos ingressos para atividades artísticas. Mas infelizmente, em pleno Século XXI, a pessoa idosa foi transformada em problema: ela é discriminada nos espaços públicos, na Publicidade, nos Meios de Comunicação; é alvo de humilhação através do humor covarde e preconceituoso; e, é “depositada” em instituições de longa duração para pessoas idosas. Há uma tentativa constante de retirada da “Certidão de Existência” da pessoa idosa.

         Concluindo, podemos dizer que as pessoas e a sociedade têm um poder muito grande que é o de reconhecer ou não a existência das demais pessoas. Muitas pessoas não tomam consciência deste poder. Refletir sobre os desafios propostos por Protágoras de Abdera é muito importante!


terça-feira, 25 de junho de 2019

Solidariedade Intergeracional ou Capitalização?!


(Faixa em defesa da Previdência Social, no Páteo do Colégio, dia 17 de junho de 2019)


Solidariedade intergeracional ou Capitalização?!

Coletivo Envelhecer


A Emenda Constitucional 06/2019 que pretende modificar o sistema de Previdência Social, ao fim e ao cabo, pretende acabar com o sistema de “Solidariedade Intergeracional” e substituí-lo pelo sistema privado de “Capitalização”.

O sistema de Capitalização foi adotado em inúmeros países e na maioria deles fracassou. O exemplo mais próximo à nós é o do Chile. Adotado durante a Ditadura do General Augusto Pinochet, que deu um Golpe de Estado no dia 11 de setembro de 1973 e impôs a mudança no sistema de Previdência Social e outras mudanças, com base na tortura, assassinatos e exílio de milhares de pessoas. O atual Ministro da Economia Paulo Guedes, participou da execução desse plano criminoso no Chile. Hoje milhares de pessoas idosas chilenas recebem menos do que um salário mínimo para sobreviver. Levando muitas delas ao suicídio!

Se a Emenda 06/2019 for aprovada, as pessoas idosas passarão a receber um BPC (Benefício de Prestação Continuada) no valor de R$400,00. Além de ser uma crueldade, esta decisão levará milhares de pessoas idosas à condição de esmoleiros nas ruas do nosso país.


A CPI da Previdência demonstrou que não existe “déficit da Previdência”. Na verdade, existe superávit! Entre 2000 e 2015, o superávit foi de R$821,7 bilhões. Em contrapartida, nos últimos 15 anos, a Previdência deixou de arrecadar mais de R$4,7 trilhões com desvios, sonegações e dívidas.
As mudanças no Sistema de Previdência Social pretendem transferir uma fortuna enorme dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras para os banqueiros e rentistas!


Em defesa dos 99% do povo brasileiro!

Do Orçamento da União, de cerca de 2 trilhões e 650 bilhões de reais, mais de 40%, aproximadamente 1 trilhão e 65 bilhões de reais, são para pagar os juros da Dívida Pública! Isto é, vai para os cofres dos banqueiros e rentistas! Que são cerca de 1% da população brasileira!
Pelo menos 1,2 trilhão de reais da Dívida Pública é ilegal! É preciso que se faça uma Auditoria Cidadã da Dívida Pública!  https://auditoriacidada.org.br/

A ganância dos banqueiros e rentistas é insaciável! Precisamos romper com a “Espiral do Silêncio” imposta pelos Meios de Comunicação e pelas Instituições Religiosas. Quem impõem o “pensamento único” da “Reforma da Previdência”. Não se abre espaço para ouvir o outro lado!

Estamos vivendo em um ambiente religioso que idolatra o “Deus Capital”! Esta prática religiosa exige sacrifício de vidas humanas e da natureza, para saciar a fúria do “Deus Capital”! Por isso, todas as medidas de “austericídio” provocam a desproteção e a morte dos mais fracos: pessoas idosas, deficientes, mulheres pobres, população negra.


Propostas para uma sociedade fraterna e solidária:

1.   Instituição de imposto sobre grandes fortunas. Arrecadação prevista: R$47,6 bilhões por ano.
2.    Criação do imposto sobre propriedade de veículos automotores (IPVA) para aviões, helicópteros e embarcações de passeio. Arrecadação prevista: R$4,6 bilhões por ano.
3.    Eliminação da isenção da taxação de lucros e dividendos e da permissão de dedução dos juros sobre o capital próprio. Arrecadação prevista: R$55 bilhões por ano.
4.     Majoração da alíquota máxima do imposto sobre grandes heranças (ITCMD – Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação) como parte da resolução da crise sobre nos Estados. Arrecadação prevista: R$35 bilhões por ano.
5.     Por uma Auditoria Cidadã da Dívida Pública.
6.     Pela Garantia do BPC a partir dos 60 anos, mantendo sua vinculação ao Salário Mínimo.
7.     Pela defesa intransigente do SUS, do SUAS e da Previdência Social.

terça-feira, 18 de junho de 2019

O Julgamento de Sócrates

"A morte de Sócrates", quadro de Jacques-Louis David (1787)


O Julgamento de Sócrates

          Vivemos tempos sombrios no Brasil, caracterizado pela perseguição ao Ensino de Filosofia e a prática do “lawfare”, isto é, quando o Sistema Judiciário é usado para fazer perseguição política.

          Estes acontecimentos nos remetem ao “Julgamento de Sócrates”, que ficou eternizado na obra de Platão intitulada: “Defesa de Sócrates”. Algumas editoras também traduzem por: “Apologia de Sócrates”.

          Sócrates foi julgado e condenado no ano 399 a.C., em Atenas. Foi condenado a tomar cicuta, um veneno mortal. O filósofo morreu aos 70 anos de idade.

As acusações para o seu julgamento foram:


         1ª) Não aceitar os deuses de Atenas;
         2ª) Introduzir novas divindades em Atenas;
         3ª) Corromper a juventude ateniense.

         Em que consistiam estas acusações?

         1º) Os deuses oficiais do Estado são, na maioria das vezes, em todos os povos, manipulados para legitimar os políticos que estão no poder. Considerando que a Democracia Grega estava em decadência, por vários motivos, dentre eles a ascensão de um grupo de políticos autoritários que assaltavam o poder em Atenas.

         Outro motivo foi o período da decadência das Escolas dos Sofistas, que transformaram a Democracia em demagogia, que aqui podemos resumir na expressão: “arte de manipular e agradar o povo”. Através de promessas que certamente não serão cumpridas; ou da adoção de medidas que agradam parte da sociedade, mas prejudica a maioria. Por exemplo: relaxar o rigor da fiscalização das Leis de Trânsito e da Legislação sobre o Meio Ambiente.

         Tudo isso legitimado por um discurso religioso, com as autoridades religiosas e políticas atuando em sintonia.

Sócrates era implacável em suas críticas, especialmente usando da ironia, isto é, do questionamento sistemático desse tipo de manipulação religiosa.


         2º) Sobre as novas divindades. Sócrates se referia a um certo “daímon”, isto é, “uma potência divina”, que também podemos chamar de razão. Ou seja, Sócrates ajudava as pessoas a pensar com a própria cabeça, mas os seus adversários preferiam classificar o exercício do pensamento como algo perigoso e por isso foi apresentada a seguinte alternativa: se Sócrates parasse de filosofar, seria absolvido. Mas Sócrates disse que deixar de filosofar seria o mesmo que morrer, por isso, não abandonaria a Filosofia.


         3º) Corromper a juventude. A juventude ateniense era instruída pelos Sofistas, que ensinavam os jovens a serem bons oradores, a serem convincentes a qualquer custo e a buscarem o sucesso a qualquer preço.

         Ora, Sócrates ensinava os jovens a questionar os Sofistas, os Políticos, os Militares, os Comerciantes, os Líderes Religiosos. Isso passou a incomodar muito os poderosos.

         Por incrível que pareça, esta história é muito atual. Por isso, a Filosofia continua perigosa depois de 2.500 anos após a morte de Sócrates.

         Vamos concluir com a citação de uma passagem do livro “Defesa de Sócrates”, onde ele fala sobre o papel do juiz:

         “Atenienses, não me parece ser justo fazer preces ao juiz e conseguir fazer preces ao juiz e conseguir absolvição por meio de súplicas. Ao juiz, é preciso dar esclarecimentos e procurar convencê-lo, pois o juiz não tem assento no tribunal para fazer da justiça um favor, mas para decidir o que é justo. Não fez o juramento para favorecer o que lhe agrade, mas para julgar segundo as leis”.


Bibliografia

BENOIT, Hector. Sócrates: o nascimento da razão negativa. São Paulo: Editora           Moderna, 1996.
CHAUI, Marilena. Sócrates: o elogio da Filosofia. In: Introdução à História da     Filosofia – Dos Pré-Socráticos a Aristóteles – Volume I. São Paulo: Companhia das   Letras, 2002.
PLATÃO. Defesa de Sócrates. São Paulo: Nova Cultural, 1987. Coleção Os   Pensadores.