Crianças, pandemia e memórias
Por: Francisco José Nunes
O que ficará na memória das crianças sobre o período da pandemia do COVID-19? Apesar das adversidades, ficarão memórias de momentos felizes, prazerosos, intensos? Muitas mães e pais se desdobraram para contornar os problemas gerados pela pandemia. Buscaram garantir a rotina de alimentação, higiene, estudos e brincadeiras. Mas a reclusão pareceu ser um problema insuperável. A saudade das viagens bateu muito forte!
Neste período de pandemia, muitos adultos procuraram por livros e filmes, tanto para si próprios, quanto para as crianças.
Vamos indicar aqui um livro que provavelmente será dirigido tanto para os adultos, quanto para as crianças. Trata-se do livro: “Um, dois e já”, da escritora uruguaia Inés Bortagaray. É um romance autobiográfico, narrado na primeira pessoa, por uma menina, com a idade indefinida. Provavelmente, por volta de 9 anos. A narradora prende os leitores desde a primeira página. Seja pela singeleza, seja pela descrição das emoções, dos julgamentos e das brincadeiras de crianças, comum para a maioria das pessoas.
O romance descreve uma viagem para a praia, da família da menina que narra o livro. Viajam da cidade de Salto, que fica na região noroeste do Uruguai, na fronteira com a cidade de Concórdia (Argentina) até a cidade litorânea La Paloma, numa distância de 702 km, dentro de um apertado carro Renault 12. No carro estão o pai, que é o motorista; a mãe, que fica ao lado e faz o “mate”; e no banco de trás ficam as quatro crianças. Não se sabe o nome dos pais, nem das crianças, nem suas idades. Apenas sabe-se que a menina-narradora é a filha do meio, que tem uma irmã mais velha, um irmão mais velho e uma irmã caçula. Isso faz com que os leitores se identifiquem com algum dos personagens. A longa viagem é um tédio. Então a narradora se recorda das brincadeiras e das experiências vividas.
Por tratar-se de uma longa viagem, há uma combinação sobre o acento nas janelas, isto é, a cada 200 km rodados é feita a troca. Ao longo das viagens as crianças brincam de contar os postes que passam, contar as vacas e as placas; “brincam de sério”; brincam de contar piadas, entre outras brincadeiras. “Vejo um poste que passa e vai embora até que vejo outro poste que passa e vai embora, mas nunca totalmente, porque na ida deixa um rastro. O rastro é o poste em movimento, o poste corrido, varrido, que continua numa fileira de postes-fantasmas de pé entre poste e poste verdadeiro”. Este é o primeiro parágrafo do livro.
Apesar da idade, a narração não é “infantilizada” e muito menos trata-se de um adulto disfarçado de criança. Essa é uma das preciosidades do livro. Parece que a família já fez esta viagem outras vezes, as crianças sempre recordam das paisagens. Além de brincar, a narradora dorme no ombro da irmã mais velha, tem sonhos e descreve os sonhos. Às vezes se lembra das amigas, especialmente daquela que ficou cuidando do seu aquário, com dois peixes. Lembra também das situações desagradáveis, como por exemplo, ela tem enjoo durante as viagens e sempre vomita, pelo menos uma vez no caminho.
Muitos detalhes desta resenha não estão no livro. Os leitores são impulsionados a concluir ou a pesquisar. Por exemplo, a narradora faz referências à ditadura no Uruguai, que durou de 1973 até 1985; também fala sobre a “Guerra das Malvinas”, que foi de 2 de abril até 14 de junho de 1982. A autora do livro, Inés Bortagaray, nasceu na cidade de Salto, no dia 22 de maio de 1975. Sobre isso, a narradora diz: “Outro dia meus pais foram a uma manifestação pela democracia e Eva (amiga da narradora) estava comigo e fomos todos juntos e na praça pulamos ao som de quem não pula quer censura. A Eva pulava mais que eu e aplaudia e até se aproximou do palco para ficar mais perto dos políticos.”
O livro também é cheio de ironia. A menina assim descreve um de seus pensamentos durante a viagem: “Às vezes penso no dia seguinte à minha morte e no anúncio da margarina que unta, com aquelas dobrinhas perfeitas, a superfície da torrada perfeita e o ar matinal da família feliz no café da manhã com sol e janela e cortina e jornal e torrada e fumaça saindo do café e as unhas de todo mundo bem cortadas e limpinhas e tudo vai continuar funcionando como antes, e quando a mãe morde a torrada ao mesmo tempo que sorri e lança aquele olhar de que delícia essa margarina, meu Deus do céu, já posso morrer (isso é o que ele diz mentalmente, no ápice do entusiasmo, não é o que eu digo, apesar de estar justamente falando da minha eventual morte) (...). O livro tem apenas 93 páginas, mas contém uma riqueza enorme de detalhes, que os leitores saboreiam do início ao fim.
Retomando a pergunta inicial da resenha. Que memória as crianças guardarão dessa pandemia? Sobre livros, filmes, brincadeiras; será que conseguiram visitar os avós após a vacinação? Ou os avós faleceram antes da chegada da vacina? O que as crianças aprenderam para poderem enfrentar uma “sociedade pandêmica”? Porque, pelo que tudo indica, a sociedade vai conviver constantemente com a pandemia do COVID-19 e de suas variantes; vai conviver com outras pandemias, porque o movimento negacionista cresceu muito e conta com o apoio da maior parte dos profissionais da saúde, com o apoio das instituições religiosas e da mídia.
Ainda bem que, diante de todas as adversidades, a literatura consegue acalentar nossos corações, sem nos deixar alienados!
Serviço
Livro: “Um, dois e já”
Autora: Inés Bortagaray
Ano: 2014
Páginas: 93
Editora: Cosac Naify
Nota: Apesar do fechamento dessa editora, é possível encontrar esse livro em bibliotecas, nos sebos e em algumas livrarias virtuais.
Autor:
Francisco José Nunes
Mestre em Ciências Sociais - PUC-SP; Graduado em Filosofia; Professor
na Faculdade Paulista de Comunicação - FPAC.
P.S.: Este artigo foi publicado originalmente no site
"Construir Resistência", no dia 26 de novembro de 2021.
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